A Lei 14.301, de 7 de janeiro de 2022 (Lei da Cabotagem), sancionada com vetos pela Presidência da República, estabelece um novo marco regulatório para a cabotagem no Brasil com diferentes inovações e alternativas de atuação dentro do setor de navegação.

Desde o primeiro semestre de 2019, o setor de navegação brasileiro tem acompanhado o desenvolvimento da agenda em torno do projeto BR do Mar, elaborado com o propósito de incrementar o aproveitamento da cabotagem no país. Com extensa costa litorânea, o Brasil tem apenas 11% das cargas transportadas entre portos nacionais.[1]

Inicialmente elaborado em conjunto pelo Programa de Parcerias de Investimento (PPI), o Ministério da Economia e o Ministério da Infraestrutura, o Projeto BR do Mar congregou estudos técnicos, manifestações do setor e decisões administrativas que apontavam a necessidade de estabelecer novas diretrizes para o setor de cabotagem. Ineficiências regulatórias, custos operacionais elevados e baixa competitividade eram apontados como fatores que limitavam investimentos e restringiam a diversificação da matriz logística nacional, que se apoia substancialmente no transporte rodoviário.

As medidas constantes na Lei da Cabotagem pretendem ampliar a oferta e melhorar a qualidade do transporte de cabotagem no país, incentivar maior concorrência no setor e estimular o desenvolvimento da indústria naval de cabotagem. Segundo estudos da Empresa de Planejamento e Logística (EPL), vinculada ao Ministério da Infraestrutura, espera-se que o conjunto dessas alterações seja capaz de proporcionar reduções de mais de 15% no valor do frete de cabotagem no Brasil. Destacamos algumas das alterações trazidas pela lei:

 

Frota

 

Afretamento de embarcações estrangeiras. A Lei da Cabotagem ampliou as possibilidades de afretamento de embarcações estrangeiras previstas na Lei 9.432/97 (Lei de Ordenação do Transporte Aquaviário).

Com a Lei da Cabotagem, foram adicionadas ao rol de possibilidades de afretamento de embarcações estrangeiras, independentemente de autorização pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq):

  • o afretamento nas modalidades por tempo ou por viagem, para operar na navegação de cabotagem, em substituição à embarcação de tipo semelhante, própria ou afretada, que esteja em jumborização, conversão, modernização, docagem ou reparação, seja no Brasil ou no exterior, limitada a até 100% da tonelagem de porte bruto; e
  • o afretamento na modalidade a casco nu de embarcação estrangeira, independentemente de outros requisitos, até o limite inicial de uma embarcação estrangeira para navegação de cabotagem, que aumentará progressivamente até que, a partir do 48º mês da vigência da Lei da Cabotagem, deixe de haver limite para o afretamento de embarcações estrangeiras na modalidade a casco nu.

A principal consequência das alterações das regras aplicáveis ao afretamento é a possibilidade de que as Empresas Brasileiras de Navegação (EBNs) passem a operar sem embarcações próprias, já que deixará de ser necessário o lastro de afretamentos de embarcações estrangeiras em embarcações brasileiras.

Subsidiárias no exterior para frota. De acordo com a Lei da Cabotagem, as EBNs que se habilitarem no Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem (BR do Mar) passarão a poder afretar embarcações de subsidiárias integrais no exterior ou de subsidiárias integrais de outras EBNs no exterior. O afretamento por tempo das embarcações estrangeiras de subsidiárias integrais no exterior poderá ser realizado em cinco hipóteses:

  • ampliação da tonelagem de porte bruto das embarcações próprias, em proporção ainda a ser definida por ato do Poder Executivo federal;
  • substituição de embarcações de tipo semelhante em construção no Brasil na proporção de até 200% da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção pelo prazo de 6 meses prorrogáveis até 36 meses;
  • substituição de embarcação de tipo semelhante em construção no exterior na proporção de até 100% da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção pelo prazo de 6 meses prorrogáveis até 36 meses;
  • atendimento exclusivo de contratos de transporte de longo prazo, hipótese a ser regulamentada pelo Poder Executivo federal; e
  • prestação exclusiva de operações regulares para o transporte de cargas em tipo, rota ou mercado ainda não existentes ou consolidados na cabotagem brasileira, pelo prazo de 36 meses, prorrogáveis por até 12 meses, conforme for regulamentado pelo Poder Executivo federal.

A forma de habilitação das EBNs interessadas no Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem (BR do Mar) será realizada por ato do ministro da Infraestrutura e dependerá de regulamento a ser editado.

EBN-i. A Lei da Cabotagem prevê a criação da Empresa Brasileira de Investimentos em Navegação (EBN-i), destinada exclusivamente a afretar embarcações para EBNs ou para empresas de navegação estrangeiras.

 

Benefícios tributários

 

Incentivos fiscais. Apesar da de o Regime Tributário para Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária (Reporto) não ter sido determinado, a Lei de Cabotagem criou um benefício tributário especificamente para embarcações estrangeiras afretadas e autorizadas a operar no transporte de cabotagem. Essas embarcações serão automaticamente submetidas ao regime de admissão temporária, sem registro de declaração de importação, com a suspensão total de diferentes tributos: Imposto de Importação (II), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI-Importação), PIS/Pasep-Importação, Cofins-Importação, Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool etílico combustível (Cide-Combustíveis) e o Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM).

 

AFRMM

 

Utilização do AFRMM. Algumas das mais relevantes alterações da Lei da Cabotagem são relacionadas aos procedimentos e regras para utilização dos recursos arrecadados pelo AFRMM, que, segundo relatório elaborado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES) no fim de 2021, somam cerca R$ 585 milhões depositados em contas vinculadas em nome de EBNs e R$ 24,9 bilhões na carteira de crédito do Fundo da Marinha Mercante (FMM).[2]

A Lei da Cabotagem tornou mais restritas as possibilidades de utilização de recursos financeiros do AFRMM em aquisições ou construções de embarcações. Os créditos poderão ser utilizados para aquisições ou construções de embarcações do mesmo tipo que originou os recursos financeiros de AFRMM depositados na conta vinculada da EBN. Dessa forma, uma EBN que opera na navegação de cabotagem não mais poderá utilizar os recursos de AFRMM arrecadados nessa atividade para financiar embarcações que atuarão em outras modalidades de navegação (por exemplo, apoio portuário e apoio marítimo).

Por outro lado, a Lei da Cabotagem passa a permitir a utilização de recursos do AFRMM para realização de serviços de manutenção e revisão por empresas especializadas, possibilidade que antes era restrita a estaleiros. Os recursos do AFRMM depositados em contas vinculadas poderão ser utilizados para prestação de garantia à construção de embarcação em estaleiro brasileiro e reembolsos anuais dos valores relativos a seguros e resseguros contratados para cobertura de cascos e máquinas de embarcações próprias ou afretadas.

AFRMM e incentivos à infraestrutura portuária. A Lei da Cabotagem passa a permitir também a utilização de recursos do AFRMM pelo FMM para apoio financeiro mediante concessão de empréstimo em financiamentos e contratações de serviços de obras de engenharia por autoridades portuárias, arrendatários e terminais de uso privado, em até 100% do projeto aprovado.

 

Vetos parciais

 

Apesar de as alterações acima terem sido sancionadas e aprovadas pela Presidência da República, houve veto parcial ao projeto de lei que havia sido aprovado pelo Congresso Nacional. Com isso, a parte do Projeto de Lei 4.199/21 sancionada e publicada na Lei da Cabotagem já se encontra vigente, enquanto os assuntos vetados ainda deverão ser abordados pelos senadores e deputados em sessão conjunta e poderão voltar para sanção presidencial, caso os vetos sejam recusados pela maioria absoluta dos congressistas.

Entre os vetos de maior importância estão os seguintes:

Veto ao Reporto. O Reporto, constituído pela Medida Provisória 206/04 e com sucessivas prorrogações, esteve vigente até o dia 31 de dezembro de 2020. Pela redação do projeto da Lei da Cabotagem que foi aprovado no Congresso, o Reporto voltaria a viger para o período de 1° de janeiro de 2022 a 31 de dezembro de 2023, suspendendo tributos federais como o II, o IPI-Importação, o PIS/Pasep-Importação e o Cofins-Importação para a importação de máquinas, equipamentos, peças de reposição destinados à modernização e ampliação de estruturas portuárias. No entanto, o presidente da República vetou a nova vigência do Reporto, e o benefício não será mais aplicado.

Alterações nas alíquotas do AFRMM. O projeto de lei aprovado pelo Congresso previa alterações nas alíquotas do AFRMM aplicáveis às modalidades de navegação de longo curso e de cabotagem. Sobre a remuneração do transporte aquaviário seriam aplicáveis as alíquotas de 40% na navegação fluvial e lacustre, no caso do transporte de granéis líquidos nas regiões Norte e Nordeste, e 8% nas navegações de longo curso, cabotagem, e fluvial e lacustre, no caso do transporte de granéis sólidos e outras cargas nas regiões Norte e Nordeste.

Requisito de 2/3 da tripulação como quantidade mínima de marítimos brasileiros em embarcações. Como medida para preservar empregos para tripulantes nacionais, o projeto de lei previa que as embarcações estrangeiras de EBNs habilitadas no âmbito do programa BR do Mar deveriam ter obrigatoriamente:

  • tripulação composta de, no mínimo, 2/3 de brasileiros em cada nível técnico do oficialato, incluídos os graduados ou subalternos, e em cada ramo de atividade, incluídos o convés e as máquinas, de caráter contínuo; e
  • comandante, mestre de cabotagem, chefe de máquinas e condutor de máquinas brasileiros. Em casos de inexistência de quantitativo de marítimos brasileiros para compor a proporção mínima exigida, a empresa habilitada poderia requerer à Antaq autorização para operar a embarcação específica com tripulação estrangeira, em caráter temporário, por prazo determinado, não superior a 90 dias, ou em apenas uma operação, no caso de a execução exigir tempo maior que o prazo máximo estabelecido. As discussões em torno da quantidade mínima de marítimos brasileiros em embarcações estrangeiras inscritas no programa BR do Mar foi um dos principais pontos de controvérsia entre técnicos do Governo, parlamentares, representantes sindicais e empresários do setor.

A Lei da Cabotagem entrou em vigor no dia 7 de janeiro de 2022, mesma data em que foi sancionada e publicada. Além das novas regras aplicáveis, as EBNs deverão avaliar se consideram pertinente se habilitar e aderir ao programa BR do Mar, parte opcional da Lei da Cabotagem que oferecerá maior flexibilidade no afretamento de embarcações estrangeiras de subsidiárias no exterior. Em relação aos vetos presidenciais, espera-se que eles iniciem sua tramitação logo após o fim do recesso parlamentar em fevereiro de 2022. Considerando as manifestações públicas em torno desses temas, é possível que haja diversos debates antes de uma nova definição.

 


[1] Fonte: TKU da Navegação Interior, de Cabotagem e Longo Curso em Vias Interiores - 2019. Brasília: Antaq, 2020. Disponível em: http://sophia.antaq.gov.br/index.asp?codigo_sophia=28203. Acesso em: 3 jan. 2022.

[2] Fonte: https://www.bndes.gov.br/wps/wcm/connect/site/c359b9a0-3595-4694-a1df-3a5c1f6d5566/Relat%C3%B3rio+financeiro+do+FMM+3+tri+2021+Internet.pdf?MOD=AJPERES&CVID=nTzd5Tk. Acesso em 11 jan. 2022.