Por Alberto Faro, Renata Oliveira e Felipe Baracat

A recém-publicada Lei nº 14.112/20, que altera a Lei de Recuperação Judicial, trouxe inovações sobre o instituto da consolidação substancial, gerando alguma preocupação para sponsors e financiadores de projetos de infraestrutura na modalidade project finance.

A consolidação patrimonial surge na jurisprudência americana como medida de unificação de ativos e passivos de empresas de um mesmo grupo econômico que passam por uma crise econômico-financeira, de modo que todas as recuperandas se responsabilizem por todos os credores do grupo econômico, e que todos os credores assumam os riscos de todo o grupo, e não apenas de suas devedoras diretas.

As cortes americanas então definem dois testes determinantes para a consolidação substancial, aplicados nesta ordem, (i) o fato de os credores terem negociado com diferentes companhias acreditando se tratar de um único ente econômico; e (ii) o fato de os negócios desenvolvidos pelas devedoras se caracterizarem por tamanha confusão patrimonial que a consolidação substancial seria uma medida benéfica para todos os credores. São também requisitos da jurisprudência americana:

  • a presença de demonstrações financeiras consolidadas;
  • a identidade na atuação de mercado e da composição societária;
  • a existência de garantias cruzadas; e
  • a existência de um único sistema integrado de controle do capital.

De todo modo, a consolidação substancial na forma configurada atualmente nos Estados Unidos representa uma medida excepcional e funda-se em evidente segurança jurídica.

A preocupação para as operações de project finance no Brasil surge pelas características inerentes a esse modelo de financiamento. Há traços como estrutura acionária centralizada e segregação dos projetos em diversas SPEs (sociedades de propósito específico), além da identidade de atuação de mercado entre as várias sociedades do mesmo grupo empresarial. Há também garantias reais dos projetos, sendo comum a outorga de garantias pessoais pelas parent companies. Muitas vezes se observa também a existência de garantias cruzadas.

O conceito de consolidação substancial surgiu com a edição da Lei nº 14.112/20, mas já era aplicado pela jurisprudência. Uma decisão não tão recente da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo,[1] referente ao processo de recuperação judicial do grupo Urbplan, foi a primeira a estabelecer critérios objetivos aplicáveis a empresas de um mesmo grupo econômico, destacando-se: interconexão das empresas do grupo econômico; existência de garantias cruzadas; confusão patrimonial; atuação conjunta no mercado; coincidência de diretores e da composição societária; relação de controle e/ou dependência; e desvio de ativos.[2] De qualquer forma, antes da nova lei, a consolidação substancial já vinha sendo aplicada com algum grau de segurança jurídica.

A Lei nº  14.112/20 inova ao apontar o instituto como medida excepcional, definindo requisitos objetivos para sua aplicação. Primeiro, e necessariamente, quando houver “interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores” e depois, cumulativamente com ao menos dois outros dos quatro seguintes requisitos:

  • existência de garantias cruzadas;
  • relação de controle ou de dependência;
  • identidade total ou parcial do quadro societário; e
  • atuação conjunta no mercado entre os postulantes.

A preocupação do mercado está relacionada a esses requisitos, já que as estruturas do project finance podem apresentar algumas semelhanças com tais elementos.

De todo modo, o primeiro filtro restaria prejudicado: não deveria haver, em regra, confusão patrimonial em operações estruturadas de financiamento. Isso porque cada SPE é, em geral, a personificação de um empreendimento independente. Não há também expectativa dos credores de negociarem com um mesmo grupo econômico. Pelo contrário, os credores compreendem que a contratação de dívidas com as SPEs representa, sobretudo, uma proteção ao seu crédito, uma vez que assumem um risco, previamente quantificado, específico ao projeto financiado, ainda que, muitas vezes, contem com garantias fidejussórias dos acionistas ou com a celebração de um ESA (Equity Support Agreement).

A principal diferença em relação a financiamentos empresariais mais tradicionais é que o project finance adota essa estrutura exatamente para alocar riscos de maneira eficiente e proteger os credores dentro de um cenário de alavancagem de recursos – os credores desses projetos fazem sua análise de risco e de crédito baseada nessa estrutura e, de maneira consciente, adotam os riscos de um determinado projeto sem a intenção de assumir o risco do grupo empresarial. A nova lei, inclusive, parece trazer maior previsibilidade à aplicação do instituto nesse contexto, ao positivar as condições e os requisitos para sua aplicação e considerando também que a jurisprudência tem compreendido bem a estrutura contratual, societária e de capital inerente a esse tipo de financiamento.

Outra inovação importante e sensível para o project finance é que a consolidação substancial acarretará a extinção imediata de garantias fidejussórias e de créditos detidos por um devedor em face de outro. Isso não impactará, porém, a garantia real de nenhum credor. Ou seja, se, por um lado, existem impactos ao risco de crédito dos projetos com a potencial extinção das garantias fidejussórias, por outro lado, a lei afastaria a possibilidade de ineficácia das garantias reais.


[1] TJ/SP. Processo nº 1041383-05.2018.8.26.0100. Tramitando na 1ª Vara de Falência e Recuperações Judiciais da Capital.

[2] Tais requisitos não são adotados de forma uníssona pela jurisprudência. Trata-se de decisão do juiz Daniel Carnio Costa, titular da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, juízo especializado em matéria concursal do TJ/SP– hoje o tribunal de maior relevância em matéria de direito comercial e cujas teses costumam ser replicadas pela demais cortes.