Desde a promulgação da Lei nº 11.101/05, a doutrina e a jurisprudência vêm tentando encontrar a justa ponderação entre os princípios que regem a legislação de insolvência e a necessária proteção dos direitos dos trabalhadores. Mais recentemente, a jurisprudência vem revisitando temas pertinentes ao tratamento dos credores trabalhistas nos processos de recuperação e de falência. Ao mesmo tempo, a legislação também tem desafiado antigas fórmulas e buscado novas perspectivas, sobretudo com o advento da Lei nº 14.112/20.

Nas discussões prévias à aprovação da Lei nº 11.101/05, já se percebia a necessidade de incorporar à legislação uma nova visão que rompesse com o antigo paradigma da absoluta inflexibilidade dos direitos dos trabalhadores, a fim de conciliar os interesses da classe trabalhadora com a necessidade de preservação da empresa. Isso foi salientado no parecer do senador Ramez Tebet por ocasião da apresentação do texto da lei no Senado Federal: “O que se pretende é dar condições às empresas viáveis de se manterem ativas. É claro que, muitas vezes, serão necessárias profundas reorganizações administrativas. Mas o importante é que os trabalhadores não sejam vitimados pelo efeito social mais deletério das falências: o desemprego que decorre da desintegração pura e simples de empresas falidas.”

Embora ainda haja certa resistência, nota-se que a jurisprudência tende a dar aos créditos trabalhistas um tratamento mais adequado para proteger a atividade empresarial e até mesmo os interesses dos próprios trabalhadores. Para além da necessidade de assegurar condições efetivas para a viabilidade dos negócios, busca-se encontrar um equilíbrio, de maneira que os mecanismos de proteção da legislação não se convertam em prejuízo justamente para aqueles a quem a lei procurou proteger.

Como exemplo, há o recente julgamento do REsp nº 1.924.164/SP, no qual se discutia o termo inicial do prazo de um ano previsto no art. 54 da Lei nº 11.101/05 para pagamento dos créditos trabalhistas. Nesse caso, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) para definir que o marco de início do pagamento dos trabalhadores seria a data de homologação do plano, e não a data do término do período de suspensão de ações contra a empresa recuperanda, como sinalizava o Enunciado I do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP. Em seu voto, a ministra assinalou que “[...] a manutenção da solução conferida pelo acórdão recorrido pode resultar em prejuízo aos próprios credores a quem a Lei procurou conferir tratamento especial, haja vista que, diante dos recursos financeiros limitados da recuperanda, poderão eles ser compelidos a aceitar deságios ainda maiores em razão de terem de receber em momento anterior ao início da reorganização da empresa”.

O próprio TJSP, que no julgado mencionado teve posição mais conservadora com relação ao prazo para pagamento dos credores trabalhistas, em outras ocasiões mostrou-se mais flexível nesse aspecto, como no caso do Agravo de Instrumento nº 2134208-86.2020.8.26.0000, relatado pelo desembargador Grava Brazil. Considerando as peculiaridades do caso concreto, a corte paulista admitiu nesse julgado a prorrogação do prazo de um ano estabelecido pelo art. 54 da Lei nº 11.101/05. Esse mesmo acórdão também abordou outro tema recorrente nas discussões relativas ao controle de legalidade do plano de recuperação judicial, que é a possibilidade de aplicação de deságio sobre os créditos trabalhistas, admitindo-se, no caso, um deságio de 50% dos créditos.

Destaca-se, ainda, o recente caso da recuperação judicial do Grupo Renova, em que a presidência do TJSP deferiu efeito suspensivo ao recurso especial interposto pela recuperanda no âmbito do Agravo de Instrumento nº 2026269-13.2021.8.26.0000, sustando os efeitos de acórdão que, baseado no Enunciado I do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP, estabelecia o termo inicial de pagamento dos créditos trabalhistas a partir do término do stay period.

Tamanha é a importância desses temas que a reforma promovida pela Lei nº 14.112/20 introduziu o § 2º no art. 54 da Lei nº 11.101/05. Firme no propósito de buscar uma visão que concilie a proteção dos credores trabalhistas com uma margem de disponibilidade que beneficie a efetiva reestruturação, o § 2º do art. 54 prevê a possibilidade de se estender o prazo de pagamento dos credores trabalhistas em até dois anos, desde que:

  • apresentadas garantias suficientes;
  • aprovada a proposta pela maioria dos credores trabalhistas; e
  • garantido o pagamento integral dos créditos trabalhistas.

Em casos envolvendo credores trabalhistas qualificados, o TJSP também já indicou a possibilidade se estabelecer deságios e limitação de valores para o pagamento de créditos trabalhistas, como ilustra o Agravo de Instrumento nº 2231529-24.2020.8.26.0000, extraído da recuperação judicial da Odebrecht.

As iniciativas de negociação envolvendo créditos trabalhistas não se restringem ao âmbito do plano: nota-se em alguns casos campanhas para transações extrajudiciais envolvendo créditos trabalhistas, como na recuperação judicial do Estaleiro Atlântico Sul – processo nº 0000162-07.2020.8.17.2730, em trâmite na 1ª Vara Cível da Comarca de Ipojuca/PE.

Outro exemplo bastante significativo dessa nova visão incorporada ao tratamento dos credores trabalhistas é a possível cessão de créditos derivados da legislação do trabalho. Trata-se de opção que abre novos horizontes aos credores trabalhistas, com possíveis ganhos de liquidez, o que adquire relevância em meio à pandemia e em tempos de recessão econômica.

Embora a Lei 11.101/05 não vedasse a cessão de crédito, o (agora revogado) art. 83, § 4º – pertinente à falência, mas por vezes aplicado por analogia à recuperação judicial – representava um verdadeiro desestímulo à prática, ao prever que os créditos trabalhistas cedidos a terceiros seriam considerados quirografários. Essa condição resultava em prejuízo ao próprio credor trabalhista, pois desvaloriza o crédito daqueles que, em uma posição inferior, muitas vezes tinham na cessão de seus créditos a oportunidade de realizar uma recuperação mais célere de recursos. Em boa hora, a Lei nº 14.112/20 revogou esse dispositivo, o que deve atrair o apetite cada vez maior dos investidores em direitos creditórios, considerando-se o privilégio dos créditos trabalhistas no concurso de credores, agora mantido mesmo após a cessão.

Nesse aspecto, também vale mencionar a recentíssima decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) no julgamento do AIRR - 820-23.2015.5.06.0221, proferida pelo ministro Douglas Alencar Rodrigues, que indica a possibilidade de cessão de créditos trabalhistas. Embora no caso não se tenha dado provimento à pretensão do adquirente do crédito, por questões meramente processuais, o ministro destacou que “a cessão de crédito trabalhista é plenamente possível”, reportando-se à inovação introduzida pela Lei nº 14.112/20. Isso representa um grande avanço se consideradas as fortes ressalvas que a justiça especializada sempre manteve em relação a esse tipo de negociação.

Outro aspecto bastante inovador da Lei nº 14.112/20 é a possibilidade de que créditos trabalhistas se submetam à recuperação extrajudicial, o que era vedado na redação original do art. 161, § 1º, da Lei nº 11.101/05. Há, portanto, mais um voto de confiança dado pelo legislador às negociações particulares envolvendo créditos trabalhistas, inclusive em um ambiente sujeito a maior liberdade, se comparado aos regimes de recuperação judicial e falência. É importante lembrar, contudo, que a negociação com os trabalhadores no âmbito da recuperação extrajudicial exige a participação do sindicato da categoria.

É perceptível que a legislação e a jurisprudência vêm propondo uma mudança geral de paradigma que projeta novas perspectivas para a recuperação judicial, extrajudicial e falência no tratamento dos créditos trabalhistas na Lei nº 11.101/05. Embora ainda seja cedo para avaliar o resultado prático de todas essas inovações, é certo que esse movimento resulta de uma percepção dos operadores da lei de que as estruturas tradicionais não eram suficientes para solucionar os complexos conflitos que emanam das relações entre trabalhadores e empresas insolventes. Seja como for, parece evidente que a tendência é de fazer com que todos, inclusive aqueles que não o faziam ou que o faziam com maiores limitações, sejam realmente trazidos à mesa para negociar soluções concretas para a recuperação de seus créditos.