A Medida Provisória 881/2019, batizada como Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, está organizada em cinco capítulos e altera uma série de leis, entre as mais relevantes, o Código Civil e a Lei das Sociedades Anônimas. Ela ganhou repercussão como uma aposta para catapultar o empreendedorismo, desburocratizar a atividade econômica e contribuir para a inovação, livrando as startups de alguns gargalos causados pelo Poder Público.

Aspectos gerais

Os três primeiros capítulos da lei são o coração do projeto. O primeiro, além de vincular a Declaração de Direitos da Liberdade Econômica ao regime de mercado consagrado na Ordem Econômica e Financeira da Constituição, com a primazia da liberdade de trabalho, iniciativa e concorrência, faz um exercício de ponderação para recortar os limites da aplicação e extensão dos direitos econômicos declarados, com destaque para o direito tributário e o federalismo. Além disso, são estabelecidos os seguintes princípios basilares: (i) presunção da liberdade no exercício de atividades econômicas; (ii) presunção de boa-fé do particular; e (iii) intervenção mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas.

O segundo capítulo delineia os direitos econômicos de toda pessoa natural ou jurídica para o crescimento e o desenvolvimento econômico do país, com destaque para: (i) direitos de liberdade para o trabalho, exercício de atividade econômica e sustento; (ii) garantias contra a intervenção indevida e tratamento não isonômico dispensado pela Administração Pública; (iii) presunção de boa-fé; (iv) direito de inovar e testar produtos sem a necessidade de liberação de atividade econômica; (v) autonomia da vontade no contexto de negócios jurídicos empresariais; (vi) garantias de prazo razoável no âmbito de processos administrativos, em especial aqueles relativos à obtenção de autorizações para o exercício das atividade empresariais; e (vii) digitalização do arquivamento de documentos.

No capítulo terceiro, a norma se dirige à Administração Pública para especificar o dever de evitar o abuso de poder regulatório – o que inclui obrigações com relação à livre concorrência e à livre iniciativa – evitar o desvio de função e observar as competências legais.

Além disso, a MP 881 faz alterações de ordem prática na legislação específica com o objetivo de instrumentalizar alguns dos direitos enunciados, incluindo mudanças no Código Civil (aspectos societários e contratuais), Lei das Sociedades Anônimas, normatização do Cadin, entre outras.

Novidades

A motivação da liberdade econômica é nobre, e o propósito de enfrentar paternalismo, burocracia e irracionalidade administrativa é inquestionável, mas não deve surpreender ninguém que o enunciado de direitos econômicos careça de grandes inovações normativas. Os direitos econômicos são, na realidade, uma decorrência lógica de direitos e princípios basilares da Constituição Federal, como os da dignidade da pessoa humana, liberdade de trabalho, busca do pleno emprego, princípios da administração pública, propriedade privada, livre iniciativa, livre concorrência e demais princípios da ordem econômica.

O leitor atento não deve ter encontrado nenhuma grande novidade na lista de direitos econômicos, porque já estão todos na Constituição Federal e, como tal, em condições normais, essa declaração de direitos seria completamente desnecessária.

Mas, se não estamos em condições normais, e de fato o Estado brasileiro tem um problema estrutural na observância de comandos constitucionais em geral e na previsibilidade e segurança jurídica em particular – como de fato o Brasil tem –, seria a MP 881/2019 capaz de fazer o que a Constituição Federal até hoje não fez?

O ceticismo é incômodo, mas a conclusão de que estamos diante de um texto normativo cujo efeito prático pode ser bastante limitado parece se impor, menos talvez pelas ideias que animam o conteúdo do texto (que são as mesmas presentes na nossa Constituição Federal) e mais por um problema estrutural do Estado brasileiro que, infelizmente, a edição de uma norma não será capaz de resolver.

É importante dizer o que é fundamental – e com o que a MP 881/2019 acaba por condescender, no intuito de alterar o status quo: a regra no Brasil é de que a atividade econômica em sentido estrito não depende de autorização do Poder Público, por força do disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal. Há obviamente condicionalidades, requisitos, regulação, mas o Estado não pode, a pretexto de “regulamentar” atividade econômica, terminar por condicioná-la à discricionariedade da Administração Pública e sua autorização. Nunca é demais lembrar, isso já é assim, independentemente da MP 881/2019.

O exemplo mais evidente está relacionado aos alvarás municipais. Esse poder-dever existe pela competência legislativa do interesse local conjugado com os ditames constitucionais da política urbana. Mas o fundamento desse poder-dever está relacionado à ordenação do solo urbano e à função social da propriedade urbana, não à regulação de atividade econômica em sentido estrito. Embora vários municípios entendam ter a prerrogativa de autorizar (ou não) atividade econômica em seu território, inclusive aprovando legislações nesse sentido, isso não altera o quadro constitucional. Tais leis devem ser consideradas inconstitucionais e insuscetíveis de produzir efeitos na ordem jurídica.

Algumas novidades do texto reconhecem situações fáticas já consolidadas (como atividades econômicas de baixo risco desenvolvidas em residências) ou carecem de futura regulamentação e, portanto, não têm aplicação imediata. Ainda que se reconheça a importância de melhorar o ambiente de negócios, a mudança parece, em princípio, bastante tímida.

Especificamente para as startups, duas disposições chamam atenção: os incisos VI e VII do art. 3º. Ambos parecem apontar para a criação de um sandbox regulatório, palavra da moda que significa simplesmente um espaço para experimentação de novos produtos e serviços dentro de contextos institucionais controlados (tanto do ponto de vista de escala comercial como de consequências legais).

A inovação legislativa é interessante e deve ser celebrada, mas sua operacionalização ainda é incerta. Além de parte dela estar sujeita à posterior regulamentação, há pontos controversos como a capacidade de ignorar normas infralegais em determinadas condições com base no “desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente”. Qual o critério para definir “consolidação”? Se é consolidado, há inovação? A verdade é que a afetação do direito pela transformação social não é um assunto novo (é possível ter normas legais até hoje versando sobre carros movidos a tração animal) e que a tensão entre direito posto e inovação social é parte saudável desse processo de transformação em que há sempre perdas e ganhos, benefícios e novos riscos. O ponto fundamental é haver menos enunciações legais e mais uma mentalidade do Poder Público de conter sua ânsia regulatória. Frequentemente, o problema é a incapacidade do Poder Público de receber a novidade sem desejar a intervenção imediata, ou presumir que atores realizando inovação estão perturbando a ordem. Infelizmente textos legais sozinhos não são capazes de alterar mentalidades e posturas, como aliás estamos cansados de saber.

Por outro lado, há iniciativas mais estruturantes para apoiar as startups que não estão incluídas nesse cardápio. O problema crônico de segurança jurídica no campo tributário (causado não só pelo labirinto legal, mas também pela inconstância das autoridades nas mudanças interpretativas que produzem efeitos retroativos) e a criação de exceções no contexto trabalhista e consumerista (que permitissem um melhor controle das contingências, responsabilidades e custos) parecem medidas mais efetivas para favorecer a inovação. Elas beneficiariam não só as startups, mas as pequenas e médias empresas.

Próximos passos

Há avanços na MP 881/2019. No mínimo, um reconhecimento da própria autoridade pública de que a mentalidade e os modos de fazer do Poder Público não estão nos lugares corretos. Do ponto de vista prático, no entanto, ainda será necessário aguardar regulamentações complementares e a própria tramitação da medida provisória no Congresso Nacional.

Muito importante será avaliar como as autoridades dos demais entes federativos e do Judiciário receberão e tratarão a medida provisória. Muito pouca coisa (ou nada) muda de imediato. Para além disso, permanece o argumento de que grande parte das consequências esperadas seriam decorrência lógica da Constituição Federal, o que pode trazer um questionamento inicial sobre a efetividade da medida provisória em questão: qual a razão de se respeitar a MP 881/2019 se a própria Constituição Federal não é observada?

Assim, há pouco o que comemorar de efetivo, pouco a fazer e, por ora, resta aguardar os desdobramentos. Como nota final, pode se questionar se o veículo da medida provisória seria o mais adequado para propor uma declaração de direitos econômicos. No contexto em que se discute o hábito de ignorar aspectos lógicos da Constituição Federal e seus reflexos no âmbito das liberdades econômicas, é de se perguntar se o melhor remédio para isso seria mesmo propor uma medida provisória com os requisitos de urgência e relevância passíveis de fundamentado questionamento.