A Lei nº 13.709/18, ou Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), consolida de modo expresso princípios e regras de um marco positivo para a proteção de dados no Brasil. Embora ela passe a ter efeitos apenas a partir de 16 de agosto de 2020, muitas de suas normas encontram fundamentação no ordenamento vigente. Praticamente todas as atividades econômicas estarão sujeitas à aplicação da LGPD, uma vez que basta a prática de qualquer operação de tratamento de dados[1] para que a norma encontre seu suporte fático. Analisamos especificamente neste artigo o ramo da publicidade,[2] mais especificamente a publicidade infantil, e o tratamento de dados pessoais de menores para esse fim.

O tema é bastante polêmico, pois algumas correntes entendem que a própria publicidade infantil teria caráter abusivo. Considerando que as técnicas mais modernas de publicidade se valem de análises contextuais e comportamentais, baseadas no perfil dos usuários, para direcionar a publicidade ao público infantil (especialmente menores de 12 anos), é cada vez mais importante debater essas práticas do ponto de vista legal e ético.

A LGPD deverá ser aplicada de forma coerente com todo ordenamento vigente, estabelecendo uma eficiência normativa não apenas restrita a um ramo específico, mas também funcional em relação a todo o sistema jurídico, a fim de evitar antinomia e incompatibilidades normativas. A ideia é complementar o sistema com a proteção de dados pessoais e dos direitos dos titulares, levando em conta o regramento existente.

Nesse sentido, o tema da publicidade infantil já encontra regimento em normas estabelecidas, como a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto nº 99.710/90, que promulga a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, a Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor – CDC), a própria Resolução nº 163/14, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) – embora tanto a competência quanto a obrigatoriedade dessa norma sejam fonte de controvérsia – e o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, do Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar).

Uma diferença fundamental – e que poderá gerar discussões na execução da LGPD – é o regime aplicável à criança, distinto daquele que cabe ao adolescente. Para deixar claro, os conceitos de criança e adolescente são os estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente: o primeiro se refere à pessoa até 12 anos de idade incompletos, enquanto o segundo abrange indivíduos entre 12 e 18 anos.

O sistema de proteção ao menor, estabelecido pela Lei nº 8.069/90, tem como base os princípios da proteção integral e do seu melhor interesse, reconhecendo o respeito à sua integridade como pessoa com possibilidade de pleno desenvolvimento humano. Tais princípios asseguram a prevalência e a primazia dos interesses do menor como sujeito de direitos, além de se pautarem pela preocupação com o desenvolvimento pleno das capacidades físicas, psicológicas e da própria personalidade do menor, especialmente da criança.

Nos termos do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, que estabelece parâmetros e diretrizes para a publicidade voltada a crianças e adolescentes, nenhum anúncio deverá dirigir apelo imperativo de consumo diretamente à criança.

Nesse sentido, o código define em seu artigo 37 as diretrizes para a publicidade voltada a esse público. Os anúncios deverão refletir cuidados especiais em relação à segurança e às boas maneiras e, ainda, abster-se de: (i) desmerecer valores sociais positivos; (ii) provocar deliberadamente qualquer tipo de discriminação, em particular daqueles que, por qualquer motivo, não sejam consumidores do produto; (iii) associar crianças e adolescentes a situações incompatíveis com sua condição; (iv) impor a noção de que o consumo do produto proporcione superioridade ou, na sua falta, a inferioridade; (v) provocar situações de constrangimento aos pais ou responsáveis, ou molestar terceiros, com o propósito de impingir o consumo; (vi) empregar crianças e adolescentes como modelos para vocalizar apelo direto, recomendação ou sugestão de uso ou consumo; (vii) utilizar formato jornalístico, a fim de evitar que anúncio seja confundido com notícia; (viii) apregoar que produto destinado ao consumo por crianças e adolescentes contenha características peculiares que, em verdade, são encontradas em todos os similares; e (ix) utilizar situações de pressão psicológica ou violência que sejam capazes de infundir medo.

A polêmica foi criada, porém, com a edição da Resolução nº 163/014 do Conanda, que estabelece como abusivo, em razão da política nacional de atendimento da criança e do adolescente, o direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la a consumir qualquer produto ou serviço. A resolução veda qualquer forma de publicidade a menores que se utilize de: (a) linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores; (b) trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança; (c) representação de criança; (d) pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; (e) personagens ou apresentadores infantis; (f) desenho animado ou de animação; (g) bonecos ou similares; (h) promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e (i) promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil, como forma de estabelecer uma proximidade com a criança,[3] aproveitando-se de sua inexperiência.

Essas regras estão alinhadas à parte da doutrina que defende como abusiva e inconstitucional perante o ordenamento brasileiro toda e qualquer publicidade direcionada a crianças,[4] considerando que o CDC dispõe em seu artigo 37, parágrafo segundo: “É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que [...] se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, [...] ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança”.

De igual modo, o STJ é enfático ao decidir sobre o tema, delimitando a matéria com base no caso concreto apresentado. Ao julgar o REsp 1.558.086/SP no âmbito de uma ação civil pública sobre a ilegalidade na aquisição de relógios condicionada à compra de produtos alimentícios, o STJ deixou expresso que “é abusivo o marketing (publicidade ou promoção de venda) de alimentos dirigido, direta ou indiretamente, às crianças. A decisão de compra e consumo de gêneros alimentícios, sobretudo em época de crise de obesidade, deve residir com os pais”, notadamente pelo fato de o menor ter “seu discernimento incompleto, mas que, por outro lado, tem uma enorme capacidade de convencimento sobre os seus pais, responsáveis ou familiares, voltada à aquisição daqueles produtos que lhe interessam”.

Essa também foi a orientação do STJ no REsp 1.613.561/SP sobre uma campanha direcionada ao público infanto-juvenil, que incentivou os menores a trocarem selos impressos nas embalagens de produtos alimentícios por mascotes de pelúcia uniformizados.

Tanto a autorregulamentação do setor publicitário, representada pelo código do Conar, quanto a Resolução 163/14 do Conanda reivindicam validade de aplicação em nossa ordem legal. O Conanda entende que a propaganda voltada a crianças é abusiva e que os anúncios devem ser direcionados aos pais e responsáveis. Já o Conar, que veda o apelo imperativo de consumo diretamente à criança, estabelece diretrizes para a validade, em tese, de anúncios que poderiam ser veiculados a menores de idade. Em 24 de janeiro deste ano, a Secretaria Nacional do Consumidor, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, divulgou consulta pública submetendo à discussão minuta de nova portaria a ser emitida para regulamentar a matéria.

O conteúdo em análise parece estar alinhado às diretrizes do Conar, no sentido de regulamentar, não proibir, os anúncios, mas é possível encontrar pontos de convergência, como: a presença do paradigma dos princípios da proteção integral e do melhor interesse do menor, e um princípio de proteção mais abrangente para o público menor de 12 anos, ou seja, as crianças.

Mas como equacionar a questão do tratamento de dados nesse contexto?

A LGPD estabelece como regra que o tratamento de dados pessoais de menores (crianças e adolescentes) também deve obedecer ao princípio do melhor interesse. Assim, as normas citadas anteriormente precisam ser obedecidas.

Com relação especificamente às crianças, qualquer forma de tratamento deverá ser realizada com o consentimento específico, e em destaque, dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal. Observa-se, portanto, maior proteção às crianças. Também se nota que, em complemento às bases legais para tratamento de dados pessoais indicadas nos artigos 7º e 11 da LGPD, o controlador deve estar sujeito ao artigo 14 da lei quando houver dados de crianças.

Há duas hipóteses de exceção à regra do consentimento específico e em destaque do responsável, sob a justificativa de segurança da criança: quando a coleta dos dados for necessária para contatar os pais ou o responsável legal (tais dados serão utilizados uma única vez e não serão armazenados) ou para proteção da criança. Em nenhum caso, os dados da criança poderão ser repassados a terceiro sem o consentimento dos responsáveis.

A LGPD não aborda, no entanto, a base legal para tratamento dos dados de adolescentes, o que poderá estabelecer um debate sobre sua aplicação. O consentimento do responsável, como expressamente indicado para crianças, é também necessário para adolescentes?

Para fins de capacidade de exercício, os indivíduos maiores de 16 e menores de 18 anos são incapazes em relação a certos atos civis ou à maneira de os exercer e precisam da assistência de seus responsáveis. Já os menores de 16 anos são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil, necessitando da representação para a prática de qualquer ato.

O Código Civil também estabelece que “ninguém pode reclamar o que, por uma obrigação anulada, pagou a um incapaz, se não provar que reverteu em proveito dele a importância paga”. Ou seja, para que os efeitos de um negócio jurídico celebrado com um menor sejam mantidos, é preciso provar que tais efeitos reverteram em benefício desse menor. Dessa forma, tomando-se por pressuposto que, em uma hipótese de tratamento de dados pessoais de adolescentes, esse tratamento seja revertido em benefício do próprio adolescente, seria possível argumentar que tal ação prescindiria do consentimento do responsável pelo adolescente.

Ao estabelecer uma restrição, no sentido de exigir o consentimento específico, e em destaque, de pelo menos um dos pais ou do responsável legal, o legislador o fez especificamente para crianças, excluindo de tal regra os adolescentes. Não se trata, portanto, de um lacuna, mas sim de um silêncio eloquente. Desse modo, não parece haver um requisito adicional para além do consentimento do adolescente e/ou da utilização de qualquer uma das bases legais dos artigos 7º ou 11 da LGPD para a hipótese de tratamento de dados, inclusive no contexto da publicidade.

Porém, a questão está posta no sistema de proteção de dados, com parte da doutrina indicando a necessidade de consentimento dos pais e responsáveis tanto para crianças quanto para adolescentes.[5] Espera-se que Autoridade Nacional de Proteção de Dados possa ajudar a pacificar a questão, estabelecendo critérios mais claros sobre o tratamento de dados pessoais de adolescentes, inclusive em contextos como o da publicidade.


[1] Nos termos do artigo 5º, inciso X da LGPD, tratamento é toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração.

[2] Ver Resolução nº 163/2014  do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

[3] Artigo 2º da Resolução nº 163/2014 do Conanda.

[4] A título de exemplo, tem-se o Prof. Diogo Coutinho, em recente artigo publicado: “Publicidade Infantil: ilegal e ponto final”, disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/publicidade-infantil-ilegal-e-ponto-final-03022020 Acessado em: 9 de fevereiro de 2020.

[5] Nesse sentido, Rosana Leal da Silva em “A Infância Conectada: A Proteção de Dados Pessoais de Crianças e Adolescentes em Perspectiva Comparada entre a União Europeia e o Brasil”, presente em Direito e Internet IV (São Paulo: Quartier Latin, 2019), indica que “conforme o sistema civilista brasileiro, crianças e adolescentes são incapazes para a prática de atos jurídicos válidos, incapacidade que será suprida pela representação ou assistência dos genitores ou tutor. Correta e adequada a exigência de consentimento”, pg. 279.