Uma lei aprovada pelo estado da Califórnia, nos Estados Unidos, em setembro, presume que uma pessoa que preste serviços mediante remuneração deve ser considerada um empregado da contratante, exceto se a empresa demonstrar que todos os seguintes requisitos foram atendidos:

(A) A pessoa é livre de controle e direção da parte contratante com relação à prestação dos serviços, tanto do ponto de vista contratual quando do ponto de vista fático.

(B) A pessoa presta serviços não relacionados ao curso normal dos negócios da parte contratante.

(C) A pessoa é habitualmente contratada em um comércio, ocupação ou negócio estabelecido de forma independente, da mesma natureza que a envolvida no trabalho ou serviços prestados.

Essa sistemática de verificação é conhecida nos EUA como teste ABC.

Conforme exposto em seu artigo 1º, a Assembly Bill No. 5 tem como objetivo expandir os direitos assegurados pela decisão proferida pela Suprema Corte da Califórnia no caso Dynamex Operations West, Inc. v. Superior Court of Los Angeles, 4 Cal. 5th 903 (2018) para garantir que trabalhadores classificados erroneamente como autônomos (independent contractors) – e não como empregados – tenham direitos e proteções básicos assegurados a empregados, como salário mínimo, auxílio em caso de acidente do trabalho (workers’ compensation), seguro-desemprego, licença médica remunerada (paid sick leave) e licença familiar remunerada (paid family leave).

Em razão disso, tem se discutido muito quais seriam os efeitos dessa lei sobre os negócios de empresas que visam conectar usuários a prestadores de serviços (plataformas digitais) e sobre o modelo de negócios no qual a economia compartilhada (conhecida como gig economy) se baseia.

Essa discussão tem gerado reflexos até mesmo no Brasil: estudiosos contrários ao modelo de negócios da gig economy consideram que, se fosse aplicada aqui, a lei californiana inviabilizaria os negócios das plataformas digitais, já que os prestadores de serviços que as utilizam para se conectar a clientes seriam automaticamente considerados empregados das plataformas.

Em nossa visão, entretanto, isso não é verdade, pois, se fosse introduzida ao ordenamento jurídico brasileiro, a lei sancionada pelo estado da Califórnia não acrescentaria nada de novo à realidade brasileira. Na verdade, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seus artigos 2º, 3º e 9º prevê, desde que foi editada na década de 1940, os conceitos introduzidos pela lei estadual norte-americana. É o que este artigo se propõe a abordar a seguir.

Presume-se empregado a pessoa que não está livre de controle e direção da parte contratante com relação à prestação dos serviços, tanto do ponto de vista contratual quando do ponto de vista fático. Em outras palavras, considera-se empregado toda pessoa que presta serviços à parte contratante sob subordinação jurídica, como já ocorre no Brasil.

A subordinação jurídica é essencial para a caracterização do vínculo de emprego. A nova lei da Califórnia faz referência até mesmo à importância das circunstâncias fáticas, como ocorre no Brasil com base no Princípio da Primazia da Realidade, pelo qual a realidade fática é essencial para a análise do caso concreto. Esses conceitos já são amplamente aplicados pela Justiça do Trabalho há décadas.

Em segundo lugar, presume-se empregado a pessoa que presta serviços relacionados ao curso normal dos negócios da parte contratante. Pode-se interpretar esse requisito do ponto de vista tanto da subordinação estrutural quanto pelo viés da proibição da terceirização de atividade-fim. Em outras palavras, presume-se empregado a pessoa que presta serviços inserida na estrutura organizacional da empresa contratante, como ocorre no Brasil com base na tese da subordinação estrutural, ou a pessoa que presta serviços relacionados à atividade-fim da empresa contratante.

Quanto à subordinação estrutural, muito embora essa tese seja minoritária, há decisões no Brasil que reconhecem a sua aplicabilidade em conjunto com a subordinação jurídica. Essa tese tem sido usada até mesmo pela Justiça do Trabalho na análise de casos ajuizados por prestadores de serviços contra plataformas digitais envolvendo pedidos de vínculo de emprego. Entretanto, ela não tem prevalecido quando a subordinação jurídica está ausente.

Já quanto ao viés da proibição de terceirização da atividade-fim, essa interpretação também teria sua aplicação mitigada no Brasil em razão da recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de reconhecer a legalidade da terceirização de qualquer tipo de atividade, inclusive da atividade-fim da empresa contratante.

Presume-se empregado a pessoa não habitualmente contratada em um comércio, ocupação ou negócio estabelecido de forma independente e da mesma natureza que a envolvida no trabalho ou serviço prestado. Quanto a esse ponto, embora a exclusividade não seja requisito de vínculo empregatício no Brasil, ela é considerada um importante fator na análise do caso concreto, em conjunto com a análise dos demais requisitos do vínculo empregatício, especialmente a subordinação.

Finalmente, a presunção de existência de vínculo empregatício conforme previsto pela lei californiana também já está consolidada pela jurisprudência brasileira, pois é ônus da empresa provar a inexistência dos requisitos do vínculo de emprego quando reconhecida a prestação dos serviços pela empresa. Como estabelecido pela Assembly Bill No. 5, o artigo 9º da CLT determina que quaisquer atos adotados para impedir a aplicação dos direitos previstos na CLT são considerados fraudulentos e nulos.

Independentemente disso, a jurisprudência brasileira tem se posicionado, de modo consistente, contra a ideia de que prestadores de serviços que fazem uso de plataformas digitais para se conectar com clientes sejam empregados das empresas responsáveis por tais plataformas. Esse entendimento se baseia no fato de que, regra geral, (i) não há subordinação jurídica entre os prestadores de serviços e as respectivas plataformas digitais; (ii) os prestadores de serviços não estão inseridos na estrutura organizacional das plataformas digitais; e (iii) os prestadores de serviços prestam serviços por meio de diversas plataformas digitais, muitas vezes concorrentes entre si, sem qualquer tipo de exclusividade.

Evidentemente, embora o modelo de negócios das plataformas digitais não seja isento de riscos trabalhistas, e as plataformas digitais devam tomar uma série de medidas para mitigar o risco de vínculo de emprego com os prestadores de serviços que a utilizam, a nosso ver, a recente lei californiana não mudaria o atual cenário jurisprudencial brasileiro se fosse aqui aplicada.