Uma das principais e mais importantes alterações promovidas pela Lei n 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) é a distinção entre duas categorias de trabalhadores: os hipossuficientes e os hipersuficientes.

Segundo o entendimento predominante na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), todos os trabalhadores – sem distinção – eram, presumidamente, hipossuficientes e, portanto, não teriam poder de negociação (autonomia da vontade) com os empregadores.

De 1943 – data da entrada em vigor da CLT – até hoje, no entanto, houve grande evolução da realidade social, jurídica, intelectual e econômica mundial. Aceitar que as regras adotadas há mais de 70 anos sejam hoje aplicadas da mesma forma, sem uma análise contextualizada, seria desconsiderar toda essa evolução. O contexto fático mudou, e o mesmo aconteceu com o padrão e a qualificação da mão de obra brasileira.

Observam-se atualmente altos executivos com extensos currículos, atuação nacional e internacional, vasta experiência profissional e rica formação acadêmica. Eles não podem ser equiparados aos empregados verdadeiramente hipossuficientes, que muitas vezes sequer concluíram a educação básica e para os quais, com algumas exceções, as regras da CLT foram desenhadas.

Com a evolução da economia brasileira, relações de trabalho mais complexas tornaram-se comuns, principalmente nas grandes capitais. Muitas vezes, o alto executivo, em razão de seu conhecimento técnico e da posição estratégica que ocupa no mercado, tem até maior poder de barganha na negociação do que seu empregador.

Pensando nisso, no processo da Reforma Trabalhista, foi incluído no art. 444 este parágrafo único: “A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.”

A interpretação que se extrai do texto acima é a de que os empregados que possuam, concomitantemente, diploma de nível superior e que percebam salário mensal igual ou superior a R$ 11.062,62 (valores de hoje), têm autonomia para (re)negociar/flexibilizar as cláusulas dos seus contratos de trabalho em vigor, em relação aos temas listados no art. 611-A.

Além disso, o texto é claro ao dispor que essa livre estipulação passa a ter a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos. Em outras palavras, é possível interpretar que a livre negociação feita entre os trabalhadores hipersuficientes e as empresas teria o mesmo peso daquelas negociações feitas entre o sindicato e a empresa.

Nesse contexto, e fazendo uma análise sistemática das regras celetistas com base na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), uma possível interpretação a que se chega é que seria, permitido, então, renegociar salário/remuneração com os trabalhadores hipersuficientes. Trata-se de silogismo, explicado a seguir.

Segundo o art. 7º, inciso VI, da CRFB/88, a irredutibilidade do salário é um direito dos trabalhadores, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo. O próprio art. 611-A ratifica o entendimento consubstanciado na CRFB/88, ao dispor que a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando tratarem de remuneração, prêmio e participação nos lucros e resultados.

Considerando que o parágrafo único do art. 444 estabeleceu que a negociação entre os empregados hipersuficientes tem a mesma eficácia que a negociação coletiva, seria possível argumentar que os trabalhadores pertencentes a essa nova categoria poderiam renegociar seus salários. Não obstante a possível interpretação indicada acima – que, certamente, suscitará muitos debates – é muito importante ter cautela.

Primeiramente, por causa do cenário de grande instabilidade jurídica quanto à Reforma Trabalhista. A Medida Provisória nº 808/2017 sequer foi votada e já recebeu mais de 900 emendas. Além disso, há inúmeras ações de inconstitucionalidade ajuizadas perante o STF, nenhuma das quais foi apreciada até o momento. Assim sendo, é possível que o art. 444 e seu parágrafo único ainda sofram modificações.

Em segundo lugar, porque a linha de corte para diferenciar os trabalhadores hipersuficientes estabelecida pela Reforma Trabalhista – apesar de representar 2% da população nacional – é relativamente baixa e não necessariamente reflete a autonomia negocial que o art. 444 almejou.

Embora ainda não haja precedentes jurisprudenciais nesse sentido, já que a Reforma Trabalhista está em vigor há apenas um mês, vislumbramos bons argumentos para defender essa negociação em situações absolutamente pontuais e para cargos de extrema relevância nas companhias, os chamados C-levels, desde que tal negociação seja condicionada a alguma outra contrapartida para o trabalhador, como a possibilidade de ganhos variáveis futuros, a própria garantia no emprego, entre outras.

Vale ressaltar que a melhor jurisprudência trabalhista já autorizava, em negociação coletiva, a redução salarial condicionada, inclusive, de forma temporária.

Em algumas situações, por diferentes motivos, a remuneração mensal se torna excessivamente elevada e fora do benchmark aplicável. Não raro, em tempos de crise e redução da demanda, os salários anteriormente praticados precisam ser reajustados para refletir a nova realidade das empresas. Também não é incomum que os próprios empregados enxerguem essa nova realidade e prefiram reduzir seus salários aos patamares atuais e permanecer em seus cargos, ao invés de serem demitidos.

Ou seja, a proposição identificada nas novas regras trazidas pela Reforma Trabalhista constitui um instrumento capaz de dar equilíbrio e segurança às necessidades de empregadores e empregados hipersuficientes.

Portanto, embora seja necessário ter bastante cautela quanto ao tema “irredutibilidade salarial” mesmo para os trabalhadores hipersuficientes, esse é um debate que merece atenção em tempos de crise.