O Edital de Consulta Pública do Banco Central n° 77/20 propõe alterações às regras de autorização de funcionamento das instituições de pagamento previstas na Circular BCB n° 3.885/18. Publicada no início de julho, a minuta traz propostas de impacto para a indústria de pagamentos brasileira. Algumas delas são aguardadas pelo mercado há muito tempo, como a regulamentação de uma nova modalidade de instituição de pagamento (a instituição iniciadora de transação de pagamento).

Abordamos neste artigo três aspectos do edital que merecem especial atenção da indústria.

Objeto do iniciador de transação de pagamento

 Inspirado na figura do payment initiation service provider (Pisp), criada no âmbito da regulamentação do open banking no Reino Unido, o BCB vem indicando desde abril de 2019 que o serviço de inicialização de transações de pagamento seria um dos contemplados no sistema financeiro aberto (open banking) brasileiro.

A primeira previsão regulatória desse serviço se deu, em 4 de maio de 2020, com a Resolução Conjunta n° 1 do BCB e do Conselho Monetário Nacional (CMN), que estabeleceu o marco regulatório do open banking no Brasil. A norma define o que são instituições iniciadoras de transação de pagamento (art. 2°, VI) e que o serviço a ser prestado por elas consiste em possibilitar “a iniciação da instrução de uma transação de pagamento, ordenado pelo cliente, relativamente a uma conta de depósitos ou de pagamento pré-paga” (art. 2°, VII). Além disso, a norma deixa claro que as iniciadoras de transação de pagamento serão participantes obrigatórias do open banking, devendo observar as regras a elas aplicáveis.

Essas definições, contudo, têm caráter um tanto abstrato, uma opção comumente adotada por órgãos reguladores para conferir disciplina jurídica a situações futuras e incertas.

A expectativa do mercado era uma regra mais detalhada sobre os serviços de iniciação de pagamentos. Porém, como mostra o edital, parece que o BCB pretende seguir com uma definição abstrata que lhe garanta um nível confortável de controle sobre os potenciais novos entrantes, ainda que em prejuízo de maior previsibilidade para a indústria. Esse dilema é corriqueiro em matéria de regulação financeira e, até o momento, o BCB não deu sinais de que vai mudar de estratégia.

Mesmo assim, já é possível encontrar alguns exemplos práticos que dão uma ideia mais precisa de como esse serviço funcionará na prática. De acordo com uma nota publicada no site do BCB, o iniciador de transações de pagamento permitirá que o cliente faça pagamentos com débito em sua conta de depósitos ou de pagamento sem usar cartões, isto é, por meio de quaisquer outros sistemas existentes, como book transfers ou o PIX, o arranjo de pagamentos instantâneos a ser implementado pelo BCB até o fim de 2020.

Bons exemplos de uso seriam os aplicativos de delivery, que atualmente já facilitam pagamentos com o uso de cartões, mas poderão oferecer um serviço com débito em conta sem precisar gerir conta de pagamento ou participar da cadeia de liquidação da transação.[1]

O caráter menos detalhista da norma abre um importante leque de opções para implementação desse serviço. Independentemente do meio utilizado para a transferência (cadastramento de cartão de débito, fornecimento de dados da própria conta origem dos recursos ou outra ferramenta que permita transações diretas entre contas), se a iniciação envolver um pagamento com débito em conta de pagamentos ou de depósitos, será um serviço regulado.

Maior rigidez regulatória por parte do Banco Central

 Um segundo ponto de destaque do edital é a maior restrição a ser imposta ao iniciador de transações de pagamentos. Na proposta apresentada, os iniciadores de transação de pagamento precisarão solicitar autorização prévia do BCB para funcionar. A regra difere do regime atual das instituições de pagamento, que somente devem solicitar autorização após atingirem determinados limites operacionais.

Além disso, o BCB propôs que iniciadores de transações de pagamento não possam armazenar dados das credenciais dos usuários finais utilizados para autenticar as transações de pagamento perante a instituição detentora da conta, exceto se os iniciadores prestarem serviço de armazenamento em nuvem para instituições financeiras nos termos da regulamentação em vigor.

Na prática, isso significa que as pessoas deverão inserir suas informações a cada transação realizada, caso essa proposta seja implementada, o que pode comprometer a experiência do usuário. Atualmente, uma das maiores facilidades do uso dos cartões em compras on-line – principalmente em sites de e-commerce e em aplicativos de delivery e de transportes – é a possibilidade de cadastrar e habilitar cartões para transações futuras, sem a necessidade de inserir manualmente informações a cada compra.

A proposta do BCB responde à crescente preocupação com segurança cibernética e proteção de dados pessoais no sistema financeiro. No entanto, ela mostra também o peso que esse fator vem tendo nas decisões do regulador: a segurança informacional é tida como prioridade, ainda que possa acarretar prejuízos para a experiência do usuário final.

Maior rigor com emissores de moeda eletrônica

Um terceiro ponto a ser destacado é o enrijecimento das regras de autorização de funcionamento dos emissores de moeda eletrônica (instituições que oferecem contas de pagamento pré-pagas).

Atualmente, esses emissores precisam requerer autorização de funcionamento ao BCB somente após atingirem R$ 500 milhões em transações de pagamento ou R$ 50 milhões em recursos de clientes mantidos em conta de pagamento pré-paga.

O BCB propôs no edital que todas as novas instituições enquadradas nessa categoria solicitem autorização antes de começarem a funcionar e os que já operam abaixo do limite busquem autorização conforme calendário predeterminado, a depender do volume operacional de cada instituição. Assim, todos os emissores seriam atingidos até meados de 2023.

Segundo a nota divulgada pelo BCB, a mudança tem razões de ordem concorrencial (nivelar as condições mercadológicas dos prestadores desse serviço), regulatória (aperfeiçoar o monitoramento das transações, especialmente para fins de prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo) e prudencial (aprimorar a gestão de risco da poupança popular administrada por essas instituições).

Em diversos países, vem crescendo a preocupação com a resiliência financeira dos gerenciadores de contas de pagamento pré-pagas e emissores de moeda eletrônica. Nos EUA, por exemplo, em que a regulamentação desses agentes é, em geral, mais flexível e varia de acordo com o estado em que a instituição é constituída, alguns autores defendem o aprimoramento do arranjo institucional aplicável a emissores de moeda eletrônica a fim de aumentar a proteção conferida aos recursos dos usuários.[2]

Independentemente da razão, há uma indicação clara da mudança na percepção de risco por parte do BCB, o que certamente transformará o mercado de pagamentos no Brasil, que, após seis anos de desenvolvimento, já mostra sinais de desenvoltura e atrai um número crescente de consumidores.

Com relação ao iniciador de transação de pagamentos, não existe uma medida exata do tamanho desse mercado no Brasil, mas já é possível ter uma noção do seu potencial, evidenciado, por exemplo, com a polêmica recente envolvendo o WhatsApp Pay.

A expectativa do regulador é que esse novo tipo de instituição de pagamento torne o mercado cada vez mais competitivo, estimulando a criatividade e a inovação, tanto de agentes já estabelecidos quanto de possíveis novos entrantes. Contudo, os efeitos exatos disso ainda são incertos. Afinal, se o breve histórico da iniciação de pagamentos no Brasil nos ensinou algo, é que seu impacto potencial é de grandes proporções.


[1] Uma modalidade de pagamento presente já alguns anos no Brasil para compras pela internet é a transferência bancária por meio de banco parceiro. Nesses casos, a loja online disponibilizava um link direto ao internet banking de um ou outro banco parceiro para transferência com dados já preenchidos do beneficiário. Com a figura do iniciador de pagamento, a expectativa é que esse modelo possa ser replicado de forma mais ampla e centralizada, com menores custos de transação.

[2] Awrey, Dan. Bad Money (fevereiro de 2020). 106 Cornell Law Review. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3532681.