A configuração dos empreendimentos residenciais na cidade de São Paulo vem passando por uma transformação ao longo dos últimos anos. Isso se deve, em parte, às políticas de gestão e desenvolvimento urbano e, particularmente, às premissas do Plano Diretor Estratégico municipal (PDE) e à lei de parcelamento, uso e ocupação do solo, conhecida como Lei de Zoneamento.

Em 2014, o PDE traçou a política de desenvolvimento urbano de São Paulo, para ordenar o desenvolvimento das funções sociais da cidade e o uso socialmente justo e ecologicamente equilibrado. Entre seus objetivos estratégicos estava acomodar o crescimento urbano em áreas subutilizadas, dotadas de infraestrutura e que estivessem no entorno da rede de transporte coletivo.

O PDE previu, ainda, a revisão da Lei de Zoneamento, tendo como uma de suas diretrizes a orientação da produção imobiliária para estimular o comércio local por meio de fachadas ativas no térreo dos edifícios. A Lei de Zoneamento acabou sendo sancionada em 2016 e regulamenta a ação pública e privada sobre as formas de uso do solo da cidade, com foco em um crescimento planejado, funcional, ambientalmente sustentável e democrático.

Para acomodar o crescimento urbano e estimular a aproximação dos locais de trabalho e moradia, a Lei de Zoneamento implementou, nas regiões do chamado eixo de estruturação da transformação urbana – locais próximos aos corredores de ônibus e ao longo de estações de trem e metrô – incentivos de construção para os empreendedores imobiliários, estabelecendo como requisito o uso misto dos empreendimentos.

Um dos benefícios trazidos pela lei é o de não computar as áreas de uso não residencial, desde que somem até 20% da área construída computável de um empreendimento de uso misto, dispensando-se, assim, o pagamento de outorga onerosa.

Outro incentivo é o melhor proveito das vagas de garagem. Desde que localizadas nos eixos de estruturação, a legislação considera não computável a área de até uma vaga de garagem por unidade habitacional de uso residencial e até uma vaga de garagem a cada 70m2 de área construída para o uso não residencial.

Diante desses incentivos, o que se viu na paisagem paulistana foi a proliferação de empreendimentos mistos nesses eixos, com prédios residenciais e não residenciais convivendo no mesmo terreno – especialmente os studios (apartamentos de pequenas dimensões), ao lado de empreendimentos residenciais luxuosos e com metragens maiores.

O desafio ocorre no momento da interpretação literal dos artigos nos quais essas benesses legais se apoiam.

Segundo a Lei de Zoneamento, o uso e a ocupação do solo ficam divididos em duas grandes categorias, a residencial e a não residencial. A categoria não residencial (NR) apresenta subcategorias, entre elas a subcategoria NR1, cuja natureza é a de uso não residencial compatível com a vizinhança residencial. Entre os usos previstos na subcategoria NR1, estão aqueles relacionados a serviços de hospedagem e moradia, o chamado NR1–12.

A definição da subcategoria NR1–12, porém, carrega uma carga semântica que gera incertezas para o mercado imobiliário, investidores e operadores do direito.

A expressão “moradia”, constante do texto legal, foi interpretada por alguns como permissivo legal para o estabelecimento de residência permanente nas unidades NRs, especialmente nos studios, que se acumularam nas proximidades das estações de metrô e trem paulistanas.

Para outros, a intenção do legislador foi apenas autorizar certos grupos de atividades na NR1–12, mas apenas para uma permanência provisória e com características comerciais, institucionais ou de serviços, típicas de imóveis não residenciais.

Hoje, os studios NRs são uma realidade e, para evitar que se transformem em estoque, acabam sendo utilizados como moradia permanente, e não transitória.

Consideradas unidades NRs, esses studios ainda não se enquadram nas hipóteses de financiamento subsidiado, o que também não parece ser um atrativo para um comprador comum. O resultado é que esse tipo de unidade, em geral, se torna uma opção para os investidores imobiliários.

Além disso, o preço dos studios não contraria a lógica de mercado. Terrenos mais próximos a estações de trem, metrô ou de corredores de ônibus em São Paulo já são, por natureza, terrenos com metro quadrado mais caro, o que afasta qualquer tipo de transformação democrática ou correção de desigualdades pretendidas pela lei.

Diante da dúvida interpretativa e do volume de studios NRs que hoje fazem parte da paisagem paulistana, o que se vê é uma produção de unidades em escala, integradas ao uso NR1–12 e impulsionadas pelos benefícios da Lei de Zoneamento, mas que não foram bem absorvidas pelo público a que se destinam. Hoje, elas são objeto de sondagem pelo mercado, que deseja aliar segurança jurídica e retorno financeiro.

O desafio é grande e algumas opções estão sendo testadas, como o uso de contratos de locação long stay e short stay, com moradia agregada a serviços (as a service), a fim de tentar afastar o caráter residencial de um produto de vocação não residencial.

Tanto o PDE como a Lei de Zoneamento são constantemente revisados para esclarecer, ajustar ou corrigir desvios de finalidade. Está em andamento, por exemplo, a proposta de revisão desses instrumentos, que começou pela revisão intermediária do PDE (aprovada em 2ª votação pela Câmara Municipal e no aguardo da sanção do prefeito). A Lei de Zoneamento será a próxima a ser reavaliada, com impactos relevantes para os novos empreendimentos imobiliários na cidade, inclusive os de uso misto. Um dos objetivos é retirar alguns incentivos para tentar frear a construção de mais unidades compactas, especialmente aquelas com metragens inferiores a 30m2.

O certo é que os dispositivos do PDE e da Lei de Zoneamento, que, por natureza, já são densos e complexos, dependem de maior regulação, tanto para atender à intenção do legislador, quanto para trazer conforto jurídico aos operadores e investidores e, até mesmo, para acomodar as novas interfaces entre a legislação e o organismo vivo e dinâmico que é a cidade.