O Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou recentemente tese relacionada ao Tema 1.095 para avaliar se, em caso de inadimplemento de contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária, o correto seria aplicar lei específica, a Lei 9.514/97 – que dispõe sobre o Sistema Financeiro Imobiliário e instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel (Lei de Alienação Fiduciária) –, ou lei de caráter geral, a Lei 8.078/90 – que estabelece o Código de Defesa do Consumidor (CDC).

A Segunda Seção do STJ decidiu, por unanimidade, em 26 de outubro de 2022, que “em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária, devidamente registrado, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

Ao afetar os Recursos Especiais 1.891.498 e 1.894.504 para o rito dos recursos repetitivos, o STJ suspendeu a tramitação, em todo o território nacional, dos processos sobre questão jurídica idêntica, tanto em primeira e segunda instâncias quanto as demandas que tramitam no STJ.

Em um desses casos, o devedor alegou ter havido enriquecimento ilícito do credor, já que, após reavido pelo credor, o imóvel foi alienado pelo valor integral depois de apenas um ano. Por sua vez, o credor reforçou a existência e a necessidade de aplicação de norma específica que regulamenta a relação contratual em alienações fiduciárias.

Na prática, o STJ buscou solucionar a controvérsia em relação à aplicação da Lei de Alienação Fiduciária ou do CDC nos contratos de compra e venda de imóvel em que a alienação fiduciária seja constituída como garantia, devidamente registrada no cartório de registro de imóveis competente, até em função de uma equivocada equiparação entre negócios jurídicos distintos.

Nos contratos de compra e venda com garantia de alienação fiduciária devidamente registrados na matrícula do imóvel, até que haja o cumprimento integral da obrigação contraída pelo devedor, a propriedade resolúvel do imóvel – aquela que não é plena e está vinculada à resolução de uma condição – é transferida ao credor como garantia da obrigação assumida pelo devedor.

Dessa forma, a Lei de Alienação Fiduciária estabelece que, vencida a dívida sem o pagamento no todo ou em parte do valor acordado, a propriedade do imóvel fica consolidada em nome do credor fiduciário, que deverá promover o leilão público do imóvel no prazo de 30 dias, com o objetivo de quitar a dívida (conforme os artigos 26 e 27 da Lei de Alienação Fiduciária).

Em caso de inadimplência, o credor busca a satisfação dos valores dispendidos para o financiamento de imóvel, garantidos por meio da constituição de alienação fiduciária. Portanto, não haveria que se falar em restituição de valores previamente pagos pelo comprador, então devedor, mas sim, satisfação do crédito provido pelo credor, já que se trata de cobrança de dívida decorrente da concessão de crédito.

A fim de se evitar o enriquecimento ilícito, inclusive, a referida lei determina que, após a realização do leilão, será entregue ao devedor o valor excedente obtido, se houver, desde que satisfeitos os valores relacionados ao valor da dívida, às despesas, aos prêmios de seguro, aos encargos legais – inclusive tributos – e às contribuições condominiais. De fato, a estrutura da Lei de Alienação Fiduciária busca incitar o equilíbrio econômico no momento da excussão da garantia real.

Por outro lado, se fosse considerada a incidência do CDC nos contratos de compra e venda garantidos por cláusula de alienação fiduciária, seria obrigatório reconhecer a necessidade de restituir os valores pagos até o momento do inadimplemento do devedor (de acordo com o artigo 53 do CDC), com a aplicação de multa (limitada, inclusive, pelo próprio STJ). Isso poderia representar abalo à segurança jurídica das operações do mercado imobiliário e, especialmente, a exoneração do devedor de uma série de consequências do inadimplemento.

A matéria tratada no Tema 1.095 se restringiu à forma de restituição das parcelas, e não à legalidade da excussão da garantia real em si.

De acordo com o recente entendimento do STJ, por ser norma específica e posterior ao CDC, a aplicação da Lei de Alienação Fiduciária deve prevalecer. A única exigência é que todos os requisitos legais estejam presentes, quais sejam: (i) a alienação fiduciária deve estar devidamente registrada na matrícula do imóvel no cartório de registro de imóveis competente; e (ii) o devedor deve estar devidamente constituído em mora.

Em sua decisão, o ministro relator Marco Buzzi fez alusão ao princípio da especificidade das normas jurídicas, que determina a prevalência da norma especial sobre a norma geral. Como há legislação específica regulamentando a garantia fiduciária, o CDC, por ser legislação mais abrangente, não poderia ser utilizado para impugná-la.

De acordo com a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias, mais de 90% dos financiamentos imobiliários foram garantidos por alienação fiduciária no ano de 2020. Essa é a principal forma de garantia usada no Brasil desde, pelo menos, 2001.

Esse marco se deve ao fato de, na alienação fiduciária, haver segurança para o credor quanto à restituição do valor emprestado, além da facilidade de execução da dívida por procedimento extrajudicial e célere.

Outro mitigador de risco é que a garantia utilizada para o pagamento dos valores pactuados entre as partes é o próprio imóvel do qual se pretende obter a propriedade plena, o que geraria, ao menos em tese, maior compromisso e incentivo do devedor para o cumprimento das obrigações assumidas dentro do prazo.

Nesse contexto, e sob a ótica do STJ, o julgamento do Tema 1.095 foi relevante na medida que representa a garantia de estabilidade econômica e segurança jurídica para os contratos de compra e venda celebrados, especialmente no que se refere à aplicação de norma específica do ordenamento jurídico brasileiro.

Após a devida publicação do acórdão, o Tema 1.095 terá efeito erga omnes, ou seja, será aplicável a todos os processos suspensos, bem como os supervenientes sobre questão idêntica pelas instâncias ordinárias.