As companhias brasileiras aguardaram por mais de uma década uma nova janela de oportunidade para captar recursos no mercado de capitais do país por meio de ofertas públicas iniciais ou subsequentes de distribuição de ações ou valores mobiliários referenciados em ações (ofertas públicas de equity). Desde 2006 e 2007, foram anos de baixa ou nenhuma captação por meio dessas transações. Em 2019, a expectativa do mercado era de crescimento constante dessas ofertas, com uma retomada efetiva (boom) prevista para 2020.

As informações sobre pedidos de registro de ofertas públicas de equity disponíveis para consulta no site da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) confirmam essas expectativas: em 16 de março de 2020, havia 27 pedidos sob a análise da CVM, nos termos da Instrução CVM nº 400/03, conforme alterada, em contraste com dez registradas ao longo de 2019 (sem considerar as ofertas sob análise em caráter estritamente confidencial).

Com as notícias sobre a rápida propagação do coronavírus causador da covid-19 na China no fim de 2019, as companhias emissoras e os demais agentes envolvidos nas ofertas públicas de equity no Brasil começaram a discutir a necessidade de incluir na documentação desses pedidos um fator de risco que abordasse uma possível deterioração da economia mundial e, consequentemente, das atividades, negócios e receita das companhias emissoras. Esse risco, porém, acabou se tornando realidade com o alastramento do coronavírus para outros países, incluindo o Brasil, e com a deflagração de uma crise sem precedentes com a decretação da pandemia de covid-19 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020.

Em razão desse cenário, observa-se nas últimas semanas uma enorme volatilidade na cotação dos valores mobiliários das companhias ao redor do mundo e uma deterioração significativa de seus preços de mercado, o que muitos especialistas estão classificando como uma crise ainda mais grave que a vivenciada em 2008 em decorrência dos subprimes. A viabilidade das ofertas públicas de equity em um período de tamanha incerteza e de crise econômica mundial foi colocada em xeque, e a CVM se viu obrigada a rever algumas regras e interpretações aplicáveis ao mercado de capitais brasileiro.

Em relação às ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários regidas pela Instrução CVM 400, que incluem as ofertas públicas de equity, a CVM divulgou, a partir de 13 de março, três importantes e inéditas medidas no intuito exclusivo de, ao menos por ora, tentar impedir uma enxurrada de pedidos de cancelamento (i) das ofertas públicas de valores mobiliários registradas na CVM ainda não liquidadas (ofertas públicas registradas) e (ii) das ofertas públicas de equity e demais ofertas públicas de valores mobiliários atualmente em análise pelo regulador.

A primeira orientação divulgada pela Superintendência de Registro de Valores Mobiliários da CVM (SRE), por meio do Ofício-Circular nº 2/2020-CVM/SRE, é aplicável às ofertas públicas registradas. A autarquia buscou esclarecer que, em decorrência dos impactos do coronavírus nos mercados de capitais mundiais e, em especial, no mercado brasileiro, a CVM atenderá automaticamente a solicitações de modificações dessas ofertas (em contrapartida à prerrogativa do órgão, disposta no caput do artigo 25 da Instrução CVM 400, de aceitar ou não o pleito de modificação), desde que tal pedido se relacione com os impactos do coronavírus em tal oferta. Além disso, a CVM concedeu prazo adicional para a efetiva realização da oferta modificada, que passou de até 90 dias, conforme disposto no §2º do artigo 25 da Instrução CVM 400, para até 180 dias.

A orientação divulgada pela CVM foi bem recebida pelo mercado, na medida em que trouxe às companhias emissoras e aos demais agentes envolvidos nas ofertas públicas registradas a segurança de que a CVM não impedirá que tais ofertas sejam modificadas (aceitação automática dos pleitos de modificação) em detrimento de serem canceladas ou interrompidas. Isso traz às partes envolvidas na estruturação da oferta maior flexibilidade e previsibilidade em relação à sua efetiva liquidação.

O segundo movimento feito pela CVM culminou na edição da Deliberação CVM nº 846, de 16 de março de 2020. A medida alterou de 60 para 180 dias úteis o prazo máximo da interrupção do período de análise das ofertas públicas de equity (e demais ofertas públicas regidas pela Instrução CVM 400) pela SRE e pela Superintendência de Relações com Empresas da CVM (SEP), desde que o pedido de registro de emissor de valores mobiliários (companhia aberta) na CVM tenha sido realizado concomitantemente com o pedido de registro de oferta pública de equity na SRE. Diante da impossibilidade de prever os impactos do coronavírus no mercado, a CVM, na prática, concedeu às companhias emissoras e aos demais agentes envolvidos na estruturação das ofertas públicas de equity a possibilidade de interromper procedimentos de registro por um período adicional. Isso aumenta as chances de que o mercado e os preços das ações se recuperem ao menos parcialmente e pode evitar os cancelamentos das ofertas.

A terceira e última medida apresentada pela CVM foi o Ofício-Circular nº 3/2020-CVM/SRE, de 18 de março de 2020. Buscando mais uma vez estimular a manutenção das ofertas públicas de equity (bem como as demais ofertas públicas regidas pela Instrução CVM 400), a CVM resolveu flexibilizar o entendimento sobre a aplicabilidade do artigo 48 da Instrução CVM 400 às ofertas durante o prazo de interrupção. Em caráter excepcional e em vista do alongamento do prazo durante o qual uma oferta pode ficar interrompida, a CVM esclareceu que a expressão “decidida ou projetada” constante do artigo, que é a base para definição do início do período de silêncio no curso de uma oferta, passará a ser interpretada como sendo o momento em que haja a decisão, por parte das companhias emissoras, de retomar a análise do pedido de registro da oferta pública de equity.

A medida, certamente acertada no exclusivo contexto de fomentar o mercado, eliminou um grande motivador para o cancelamento das ofertas públicas de equity, ou seja, as companhias emissoras e demais agentes envolvidos não mais estarem sujeitos à observância das regras relativas ao período de silêncio dispostas no artigo 48 da Instrução CVM 400.

Sobre a postergação da decisão de cancelar a oferta pública de equity, duas possíveis alternativas devem ser avaliadas atualmente pelas companhias emissoras e pelos demais agentes envolvidos na estruturação da transação: (i) utilizar os prazos regulamentares para atender às exigências da CVM (os quais, em relação ao primeiro ofício de exigências, podem chegar a 60 dias úteis) e, se for o caso, após o transcurso desse tempo, solicitar a interrupção dos prazos de análise perante a CVM (que passaram de até 60 dias úteis para até 180 dias úteis); ou (ii) solicitar, a qualquer momento, inclusive após o recebimento do primeiro ofício de exigências, a interrupção dos prazos de análise perante a CVM (que passaram de até 60 dias úteis para até 180 dias úteis) e, se for o caso, utilizar os prazos regulamentares para atender às exigências da CVM (até 60 dias úteis).

A análise da melhor rota a ser adotada costuma depender de fatores intrínsecos a cada companhia emissora, mas é importante observar que a CVM se reservou o direito de reavaliar o conteúdo da Deliberação CVM 846 após 30 dias da sua publicação. Isso significa dizer que as companhias emissoras que não optarem pela interrupção da oferta pública de equity agora (ou ao menos dentro de 30 dias, contados da data da deliberação) poderão eventualmente deixar de usufruir da extensão de prazo. Por outro lado, já que a interrupção da análise faz com que os prazos da CVM voltem a fluir como se tivesse sido feito um novo pedido de registro, optar por interromper uma oferta pública de equity neste momento para se beneficiar da extensão do prazo pode levar à perda de agilidade no cronograma da transação, o que não ocorre caso a decisão seja de utilizar os prazos regulamentares para atender às exigências da CVM.