A entrada em vigor da Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) traz à tona um debate já bastante difundido nos EUA, mas muito pouco abordado aqui no Brasil: a aplicação e executoriedade da cláusula clawback nos contratos de trabalho dos executivos de sociedades anônimas de capital aberto.

Após as crises econômicas das últimas duas décadas, sobretudo após o colapso da gigante Enron em 2001, governos ao redor do mundo passaram a dedicar mais atenção às condutas de gestão de altos executivos com poder de impactar o mercado nacional e internacional.

Em resposta a esse cenário, os EUA editaram uma série de leis com o objetivo de coibir os desvios desses agentes: em 2002, foi aprovada a Lei Sarbanes-Oxley; em 2008 e 2009, respectivamente, o Emergency Economic Stabilization Act (EESA) e o American Recovery and Reinvestment Act (ARRA); e, por fim, em 2010, após a crise de 2008, o governo americano aprovou o Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act (Lei Dodd-Frank). Entre outros aspectos, essas leis regulam a chamada cláusula clawback.

Essa cláusula demanda a restituição de bônus e/ou remunerações financeiras recebidos antecipadamente por executivos que compõem a administração da companhia, nos casos em que tenha havido ajustes contábeis (accounting restatements) decorrentes de equívocos ou fraudes, ainda que não seja evidenciada a má conduta/gestão por parte dos executivos.

Nos EUA, a previsão de clawback tornou-se bastante comum nos últimos anos, especialmente após a entrada em vigor da Lei Dodd-Frank. De acordo com o autor Sam Sharp, “um recente estudo da Equilar, empresa que realiza pesquisas estatísticas, mostrou que aproximadamente 73% das cem maiores empresas ranqueadas pela Fortune tinham cláusulas de clawback em 2009, contra 18% em 2006”.[1]

No Brasil, essa tendência ficou evidente com a entrada em vigor dos seguintes atos normativos: (i) Resolução nº 3.921/2010, editada pelo Banco Central do Brasil (Bacen); e (ii) Instrução Normativa nº 480/2009, editada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e com alterações posteriores.

As normas citadas demonstram claramente uma preocupação com a remuneração dos executivos atrelada à assunção de riscos. Contudo, ainda não há no cenário brasileiro um debate consistente acerca da implementação da cláusula clawback para companhias listadas em bolsa. Parece-nos, todavia, que a Resolução Bacen nº 3.921 abriu importante caminho para a introdução da cláusula clawback no Brasil, ainda que apenas sobre instituições financeiras. Agora, a Reforma Trabalhista veio sedimentar ainda mais a possibilidade de inclusão desse tipo de cláusula nos contratos dos executivos no país.

Isso porque o administrador empregado, por ter vínculo empregatício com a companhia, poderia ser considerado hipossuficiente e sem poder de negociação (autonomia da vontade). Sendo assim, a cláusula clawback celebrada com ele poderia ser tomada como abusiva e, portanto, nula.

Como forma de afastar esse entendimento, argumentava-se mais na linha principiológica, no sentido de flexibilizar o princípio da proteção ao hipossuficiente, além de aplicar o pacta sunt servanda e o princípio da autonomia da vontade.

O argumento no caso seria a impossibilidade de aceitar acriticamente que as regras adotadas em 1943, quando da edição da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), sejam hoje aplicadas da mesma forma, sem uma análise contextualizada. A realidade das relações de trabalho se tornou mais complexa e o mesmo aconteceu com o padrão e a qualificação da mão de obra brasileira.

Hoje os altos executivos têm extensos currículos, atuação nacional e internacional, vasta experiência profissional e rica formação acadêmica. Por óbvio, eles não podem ser equiparados aos empregados verdadeiramente hipossuficientes que, muitas vezes, sequer têm educação básica completa – justamente a categoria de empregados para a qual as regras da CLT foram projetadas, com algumas exceções.

Seguindo essa linha de raciocínio, a Reforma Trabalhista alterou o parágrafo único do art. 444 da CLT para incluir, expressamente, que é livre a estipulação das regras contratuais (desde que isso não contrarie as disposições de proteção ao trabalho, os contratos coletivos e as decisões das autoridades competentes) no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, o que hoje corresponde a R$ 11.062,62.

Portanto, a regra trabalhista que estará em vigor a partir de 11 de novembro de 2017 é a de que os empregados considerados “hipersuficientes” terão autonomia irrestrita para negociar e renegociar todas as cláusulas de seu contrato. Nesse sentido, não parece mais haver impedimento à inclusão da cláusula clawback nos contratos de trabalho dos executivos no Brasil.

Como efeito prático dessa mudança, as empresas poderão exigir a devolução de incentivos (bônus, PLR, stock options etc.) adiantados aos executivos para compensar expressivos e mensuráveis prejuízos à companhia em razão de conduta culposa na gestão dos negócios. Para a conduta dolosa comprovada, existe previsão expressa na CLT sobre a possibilidade de ressarcimento pelo empregado.

Esse procedimento é similar às regras previstas no artigo 462, §1º da CLT. Mais precisamente, a diferença entre o desconto previsto no artigo e os efeitos previstos na clawback é meramente prática, já que ambos os mecanismos apresentam a mesma natureza material. Em vez de se obter o ressarcimento de incentivos anteriormente adiantados aos administradores (clawback), o artigo da CLT prevê a realização de descontos nas futuras remunerações (incluindo bonificações, se elegíveis) em razão de prejuízos causados. A essência, porém, é a mesma: reaver pecuniariamente os prejuízos causados pelos empregados em razão de condutas dolosas ou culposas.

Dada a sutil diferença entre os dois institutos, com a inclusão da clawback nos contratos de trabalho seria possível obter o ressarcimento dos prejuízos mesmo daqueles administradores já demitidos, se for comprovado que eles não cumpriam seus deveres de diligência. Já no caso dos descontos do artigo 462, §1º, da CLT, eles seriam de trato sucessivo e, em tese, poderiam ocorrer até o ato da rescisão contratual, nos termos do artigo 477, § 5º da CLT.

Com a Reforma Trabalhista, verifica-se ainda que a eventual limitação de valores (atualmente pode-se argumentar que os descontos se limitam ao valor de uma remuneração do empregado, por interpretação do artigo 477, § 5º da CLT) e do momento de exigir o ressarcimento (até a rescisão contratual) sofrerá grande transformação, já que os empregados “hipersuficientes” poderão negociar individualmente os termos e as condições dos seus contratos de trabalho. Portanto, os descontos previstos no artigo 462, §1º da CLT ou a previsão da clawback em si poderão ser livremente negociados entre as sociedades empresárias e seus executivos.

Considerando os vultosos incentivos concedidos a esses empregados – valores esses vinculados ao suposto sucesso financeiro da companhia, mas restituídos apenas pelo cometimento de erro/fraude nos balanços financeiros – não há como admitir que eventuais compensações/descontos fiquem restritos ao período que perdurar o vínculo empregatício e adstritos às limitações impostas pela CLT.

Assim, confere-se ao empregador o direito de reaver dos administradores que atuaram em desfavor da companhia, de forma culposa ou dolosa, os exatos valores por ela adiantados e, posteriormente, associados a erros ou fraudes cometidos por eles. Isso é aplicável tanto durante o contrato de trabalho quanto após seu término, situação mais comum, já que a conduta pode ensejar demissão por justa causa imediata.