Em nosso artigo sobre a Lei 14.611/23, que trata sobre igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens, destacamos que a principal inovação da nova norma é a obrigação de publicação semestral de relatório de transparência salarial e de critérios remuneratórios por pessoas jurídicas de direito privado (sociedades, fundações, associações etc.).

O relatório é a concretização de um dos aspectos do pilar social das práticas ESG. Devido aos impactos decorrentes do descumprimento da obrigação mencionada, é essencial que as empresas tenham muito cuidado na elaboração e publicação do relatório.

Não apenas é necessário realizar análise prévia para verificar eventuais inconsistências antes de redigir o documento, como também é essencial ter cautela na forma como as informações salariais serão divulgadas.

As informações do relatório devem permitir a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens. Essas informações também devem ser divulgadas de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e com as obrigações legais concorrenciais aplicáveis às empresas.

Em relação à LGPD, a publicação dos dados deve ser feita após uma avaliação equilibrada da finalidade estabelecida na divulgação dos relatórios[1] e a identificação dos dados estritamente necessários para tanto.[2] A publicação de dados desnecessários pode expor a empresa a risco de violação à proteção legal de dados pessoais e gerar penalidades.

A própria Lei 14.611/23, em seu artigo 5º, define quais são as informações necessárias ao estabelecer, em seu §1º, que os relatórios conterão “dados anonimizados” e “informações que possam fornecer dados estatísticos”.

A finalidade da nova norma, portanto, não é saber “quem especificamente recebe quanto”, mas permitir a comparação objetiva e a aferição estatística dos critérios adotados, para concluir se há ou não diferença salarial entre mulheres e homens.

Do ponto de vista concorrencial, apesar de a Lei 14.611/23 não fazer referência às obrigações concorrenciais relacionadas à divulgação de salários de empregados, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) já expressou entendimento de que a troca de informações sensíveis entre empresas concorrentes pode configurar infração à Lei de Defesa da Concorrência, devido à possibilidade de levar a paralelismo ou coordenação de atuação no mercado, com efeitos semelhantes aos de um cartel.

De modo geral, são consideradas sensíveis, sob a perspectiva do direito da concorrência, informações específicas – atuais ou futuras – sobre o desempenho das atividades das empresas, que possam eliminar a incerteza no processo de tomada de decisão de quem as recebe e não estejam disponíveis em fontes públicas.

Nesse contexto, salários de empregados são tratados expressamente como informações sensíveis do ponto de vista concorrencial no guia de gun jumping publicado pelo Cade.

Como, então, as empresas poderiam publicar os relatórios de transparência salarial sem violar as regras da LGPD e do direito da concorrência? Uma solução jurídica possível seria elaborar relatórios utilizando razões matemáticas para comparar salários pagos a mulheres e a homens.

Essa metodologia já é inclusive utilizada por empresas nos Estados Unidos e na Europa para comparar salários pagos conforme níveis organizacionais. Há também empresas brasileiras que já utilizam essa metodologia em seus relatórios de sustentabilidade.

É preciso, porém, fazer ajustes: do ponto de vista legal, as empresas não podem aplicar razões matemáticas considerando apenas o nível organizacional e os cargos ocupados pelos empregados com base em uma média salarial.

No Brasil, todos os requisitos legais previstos no artigo 461 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) deverão ser considerados pelas empresas, o que torna a análise muito mais detalhada. As razões matemáticas deverão ser utilizadas para comparar salários pagos a mulheres e homens que estejam em situações legalmente equiparáveis. Isso porque, caso as empresas não observem os critérios legais de diferenciação salarial, haverá uma distorção no índice de equidade salarial entre mulheres e homens.

As empresas deverão avaliar quais são as pessoas em posições legalmente equiparáveis para, a partir daí, aplicar razões matemáticas que permitam a comparação. Se não há pessoas em situações equiparáveis, a empresa deverá esclarecer o fato.

O relatório, portanto, deverá ser adaptado à realidade de cada empresa.

Essa solução jurídica, entretanto, considera a ausência de previsão legal e de normas regulando os procedimentos a serem utilizados para elaboração do relatório de transparência salarial, em conformidade com a Lei 14.611/23. Caso o governo federal publique regulamentação específica, as empresas deverão seguir tais diretrizes.

 


[1] Princípio da finalidade – Art. 6°, I, LGPD.

[2] Princípio da necessidade ou ideal de data minimization – Art. 6°, III, LGPD.