Podem benefícios fiscais onerosos ser cancelados a qualquer tempo e com efeito retroativo? Um caso marcante a esse respeito, que discutimos em profundidade neste artigo, envolve benefícios concedidos com base na legislação que criou a extinta Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), sucedida pela Adene (Agência do Desenvolvimento do Nordeste) e, mais tarde, pela Nova Sudene.

Criada em 1959 pela Lei nº 3.692, a Sudene teve por finalidade, desde sua origem, a implementação de um auspicioso plano de desenvolvimento do Nordeste, mirando a redução das desigualdades regionais e sociais, o que inclusive merece destaque no art. 3º, III da Constituição Federal de 1988: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Em 1998, a Lei nº 9.690 alterou a área de abrangência da Sudene, para incluir também no conceito de “Região Nordeste” o Vale do Jequitinhonha e o Norte do Estado do Espírito Santo.

Passados três anos, a Medida Provisória nº 2.156/2001 extinguiu a Sudene e criou a Adene com a mesma natureza autárquica federal daquela, dando, mais uma vez, um novo formato à denominada “Região Nordeste” e passando a incluir na área considerada prioritária o Estado do Espírito Santo e o vale do Mucuri, no Estado de Minas Gerais, entre outros municípios.

Seis anos depois, em uma nova manifestação do legislador, a Lei Complementar nº 125/2007 extinguiu a Adene e criou a Nova Sudene, alterando mais uma vez a área a receber tratamento prioritário, denominada por lei como “Região Nordeste”.

A área de atuação da Nova Sudene é diversa de todas as outras, pois o Município de Governador Lindenberg apenas passou a fazer parte do Plano de Desenvolvimento Regional a partir da Medida Provisória nº 2.156/2001, permanecendo na configuração da Nova Sudene, além de vários novos municípios do Estado de Minas Gerais que foram incorporados.

Vale esclarecer que todos os laudos constitutivos de benefícios após a extinção da Sudene foram emitidos pela sua Inventariança, ou seja, não só os laudos elaborados para as empresas localizadas no sul do Estado do Espírito Santo, como também todos os emitidos para as empresas beneficiadas localizadas na Região Nordeste, que seguiram forma e procedimento semelhantes e foram editados pela mesma autoridade competente.

A Inventariança foi criada pelo Ministério da Integração Nacional quando já existia a Adene. Portanto, não houve coexistência entre Sudene e Adene. Era a Inventariança quem emitia todos os laudos constitutivos para a Adene. A própria agência nunca sequer questionou a competência da Inventariança da extinta Sudene para emitir os laudos, que foram expedidos com fundamento nas duas medidas provisórias, em especial no art. 1º, § 4º, da Medida Provisória nº 2.199-14/2001, já transcrita, bem como nos arts. 1º, 2º, 3º, I, e 11, § 2º, da Medida Provisória nº 2.156-5/2001, que são exatamente do mesmo dia.

A atividade de interpretação pressupõe diferenciar os enunciados prescritivos veiculados pelas leis do conceito de norma jurídica. Interpretar nada mais é que extrair ou construir o conteúdo, o sentido e o alcance das normas jurídicas com base no contato do intérprete com os enunciados prescritivos (textos legais).

Nunca poderá existir uma consideração ou interpretação de uma regra jurídica dissociada das demais normas que integram o ordenamento jurídico. Num dado sentido, inexistirá interpretação que não seja sistemática. É o direito positivo aqui e agora, ou considerado num dado momento histórico, levado em conta na sua totalidade, respeitada sua estrutura hierarquizada de princípios e regras.

Uma análise sistemática permite verificar que a Sudene, a Adene e a Nova Sudene foram se sucedendo no tempo sem a sobreposição de funções, pois, na realidade, elas tinham a mesma natureza de autarquia federal.

Seja sob a denominação de superintendência ou agência, a finalidade precípua dessas entidades governamentais sempre foi a de promover o desenvolvimento sustentável da Região Nordeste. Todas cumpriam com o desígnio constitucional previsto no art. 3º, inciso III, de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades regionais e sociais, assim como primavam pelo disposto nos artigos 170, VII, 151, I, e 43, da Constituição Federal.

É importante observar que a área física dos nove estados que formam o Nordeste do país nunca se confundiu com o desenho jurídico da área de abrangência de atuação dessas entidades, desde que a Sudene foi criada. A mudança de nome das entidades é de absoluta irrelevância. O que se buscou sempre foi “estudar e propor diretrizes para o desenvolvimento” de um DNA especial, maior do que aqueles nove estados da federação.

Com o passar do tempo, por iniciativa do legislador, a Sudene foi crescendo ou diminuindo de tamanho de acordo com a necessidade de proteção de seres humanos, no curso do desenvolvimento do seu plano de ação.

O fundo de desenvolvimento do Nordeste, de natureza contábil, criado pelo art. 3º da MP nº 2.156/2001 e a ser gerido pela Adene, com a finalidade de assegurar recursos para investimentos na região prioritária, estabelecia que no mínimo 3% dos valores obtidos deveriam ser aplicados no Estado do Espírito Santo, sem qualquer indicação restritiva sobre localização geográfica, se nos municípios da região norte ou nos da região sul.

Não há como se cogitar em uma agência de desenvolvimento regional sem a existência de uma fonte de recursos financeiros que lhe dê suporte. Uma coisa está atrelada à outra. É em função de um plano de desenvolvimento que se cria um fundo de recursos.

Já o §2º do art. 11 da Medida Provisória nº 2.146/2001 ditava que “a área de atuação da Adene é a definida no art. 2º desta Medida Provisória”, que incluía, sem qualquer restrição, todos os municípios do Estado do Espírito Santo.

Sendo assim, como poderia o art. 1º da Medida Provisória nº 2.199/2001 ser interpretado de forma tal que apenas os municípios localizados na área de atuação da extinta Sudene, quais sejam, aqueles da região norte do Espírito Santo, é que seriam albergados com o benefício fiscal de até 75% do imposto sobre a renda e adicionais não restituíveis, calculados sobre o lucro da exploração?

As entidades, independentemente do nome de batismo, apenas se sucederam no tempo, com mutações constantes e normais na área considerada merecedora de um tratamento prioritário, nos termos preconizados pela Constituição Federal.

Com a Medida Provisória nº 2.146/2001, mais uma vez, o conteúdo semântico do vocábulo Nordeste foi alterado. E por imposição lógica não mais existia a possibilidade de serem emitidos laudos constitutivos para uma área (a da extinta Sudene) que destoava da área considerada, nos termos da legislação vigente, como a prioritária e legítima integrante de um plano de desenvolvimento regional.

Logo, ilegal, na verdade, seria a não emissão de laudos constitutivos de benefícios fiscais para as empresas localizadas na região sul do Estado do Espírito Santo que comprovassem o cumprimento dos requisitos previstos em lei, eis que a atividade da Administração é vinculada.

A modalidade de incentivo ora tratada é a base do fomento de áreas eleitas pelo legislador como carentes de um plano de desenvolvimento para o combate de desequilíbrios sociais e regionais, sendo que essa espécie de benefício somente é concedida às empresas que comprovam o preenchimento de condições predeterminadas.

Mas não é só. Além das condições precedentes, ainda há uma série de condições onerosas estabelecidas para serem respeitadas pelas empresas após a concessão, como: (i) a vedação de distribuição aos sócios do valor do imposto que deixar de ser recolhido em função da redução ou da isenção; e (ii) a necessidade de constituição de reserva de capital da empresa, a qual somente poderá ser utilizada para a absorção de prejuízos ou para aumento do capital social.

Além disso, os benefícios têm um prazo determinado de vigência. Trata-se, pois, de isenções onerosas concedidas por prazo certo.

Ainda que se insista na alegação de que os laudos emitidos no âmbito da Adene seriam inválidos, estes não mais poderiam ser objeto de revogação ou anulação, anos após a sua fruição pelo beneficiário. Isto porque a própria Súmula 473 do STF não se aplica ao caso da forma pretendida pela parte adversa, pois, como visto, ela produziu consequências jurídicas na esfera de terceiros de boa-fé que contraíram obrigações bilaterais com o estado, devendo ser respeitados tais direitos subjetivos.

Aliás, por se tratar de benefício oneroso, a revogação e a anulação são vedadas, por motivo de preclusão da faculdade de a Administração optar por uma ou outra interpretação, ainda que tal comportamento se trate da medida que pareça à Administração mais conveniente e oportuna (discricionariedade).

Por outro lado, mesmo que se pudesse cogitar em um erro da Administração, ou seja, que a interpretação adotada inicialmente não tenha sido a melhor ou a mais apropriada, já é sabido de todos que erro de direito não pode servir de pressuposto para a anulação de atos administrativos (arts. 145, 146 e 149 do Código Tributário Nacional – CTN), que, na espécie dos autos, são vinculados. O direito positivo se pressupõe conhecido pela Administração.

Insista-se, em nome do magno princípio da segurança jurídica positivado no art. 2º da Lei 9.784/99: ainda que os laudos estivessem eivados de ilegalidade, seria vedado à Administração cancelá-los, impondo-se o dever de acatá-los. Quem cancela laudos concessivos de benefícios onerosos após três anos do gozo, pode fazê-lo ao fim do período total de desfrute do incentivo, com a imposição retroativa de juros, correção e multas. A segurança jurídica e a boa-fé dos administrados seriam comprometidas. Em tais condições, nenhuma empresa assumiria condições onerosas a conviver com o elemento surpresa de eventual cassação futura.

A cassação dos laudos constitutivos implica, ainda, ofensa aos arts. 178 e 179 do CTN, haja vista se tratar de incentivo (a) por prazo certo e (b) concedido mediante condições onerosas.

A impossibilidade de invalidação dos laudos constitutivos dos benefícios condicionados e por prazo certo assegura a própria sobrevivência dessa espécie de incentivo, protegendo, por via reflexa, o interesse público.