Apesar da crise generalizada provocada pela pandemia, a acelerada e constante rota de crescimento do agronegócio garantiu que a queda do PIB nacional não fosse tão trágica. Segundo dados divulgados pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), o Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio em 2020 teve crescimento recorde de 24,31% em relação aos números de 2019.[1] Um extraordinário avanço, especialmente se considerados os grandes entraves na tributação do setor, como a redução dos benefícios fiscais e as regras sobre créditos do PIS e da Cofins. Na lista dos empecilhos fiscais que impactam o agronegócio, está o Imposto Territorial Rural (ITR), constantemente deixado de lado pela doutrina tributária e sobre o qual é necessário fazer algumas reflexões.

Apesar da abrangência nacional, o ITR passa ao largo dos mais relevantes debates fiscais, como as discussões para as propostas de reforma tributária, muito possivelmente pelo seu reduzido impacto na arrecadação federal. Segundo o Relatório Anual de Fiscalização de 2019, publicado pela Receita Federal, o ITR respondeu por menos de 1% do total de lançamentos provenientes de fiscalização.

Entretanto, apesar de não ser um tributo expressivo em termos de arrecadação, o ITR é um imposto de inquestionável relevância para o setor do agronegócio, afetando diretamente a carga tributária daqueles que produzem no campo.

De acordo com a redação original do art. 153 da Constituição Federal, o ITR é um imposto de competência da União. Mas, desde 2003, com a edição da Emenda Constitucional nº 42, os municípios podem optar por fiscalizar e cobrar o imposto federal mediante a assinatura de um convênio.

Para o município, a vantagem dessa repartição de competências é que o produto da arrecadação do imposto sobre os imóveis estabelecidos em seu território será 100% direcionado à municipalidade, ampliando a receita local. Já para a União, que de toda forma precisaria repassar parte da arrecadação aos municípios (art. 158, II da CF/88), o benefício é garantir maior efetividade na fiscalização do tributo.

Em um país com dimensões continentais, delegar a atividade de fiscalização e arrecadação para os municípios é uma medida razoável e, de certa forma, até desejável. Entretanto, há questões decorrentes da pulverização das atividades de cobrança que merecem ser debatidas e que demandam maior reflexão.

A primeira questão está relacionada à preservação da uniformidade das premissas gerais do imposto. Embora a competência para legislar sobre os critérios de incidência continue sendo exclusiva da União, os municípios acabam interferindo – de maneira questionável – na composição da base de cálculo do tributo ao enveredarem pela atividade de fiscalização e arrecadação.

Como se sabe, o fato gerador do ITR é a propriedade, a posse ou o domínio útil de imóvel localizado fora da zona urbana do município, tendo como base de cálculo o valor da terra nua (VTN) tributável.

O VTN, por sua vez, na definição da Instrução Normativa RFB nº 1.877/19, é o preço de mercado do imóvel, que será estabelecido considerando os seguintes critérios: (i) localização do imóvel, (ii) aptidão agrícola e (iii) dimensão do imóvel.

Ao firmar convênio com a União para fiscalizar o ITR, em troca do benefício de ficar com a arrecadação total do imposto, os municípios passam a ter a tarefa de indicar periodicamente o valor de terra nua por hectare (VTN/ha) que servirá como referência para atualizar o Sistema de Preços de Terras (SIPT) da Receita Federal. O SIPT é um banco de dados alimentado pelo município que permite ao contribuinte consultar a pauta de referência do VTN da localidade e é utilizado em eventuais lançamentos para exigir o imposto.

Como reflexo dessa “municipalização do imposto”, tem-se, na prática, uma diversificação dos critérios para mensuração do valor da terra que, por sua vez, interferirá diretamente no valor do ITR.

É conhecido o caso dos municípios limítrofes de Sarzedo e Ibirité, em Minas Gerais, cujos VTNs são, respectivamente, R$ 375.659,78 e R$ 74.134,90 por hectare para lavoura de aptidão boa. Além da absurda discrepância de valor, a comparação com o VTN do município de Sorriso, no Mato Grosso, torna mais evidente a falta de critério para aferir o VTN. Centro da produção de soja do Brasil e município brasileiro com maior valor de produção agrícola, Sorriso estabeleceu um VTN de R$ 4.763,09 por hectare para lavoura de aptidão boa.

Apesar de o SIPT ter sido criado para dar transparência e segurança sobre os VTNs apurados, na prática, muitos dados da tabela não respeitam os critérios exigidos pela legislação.

Mais ainda: a transferência da capacidade de arrecadação para os municípios amplia o risco de inversão da finalidade meramente arrecadatória do imposto rural, prejudicando sua função tipicamente extrafiscal. O art. 153, VI, da CF/88 (redação atual), regulamentado pela Lei nº 9.393/96, confere ao tributo uma importante função extrafiscal, que deve ser resguardada para que ele tenha sempre um impacto positivo no uso produtivo da terra.

Com relação às discussões administrativas sobre a cobrança do tributo, por se tratar de imposto de competência da União, os processos que envolvem o ITR são analisados pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), mais especificamente, pelas turmas da 2ª Seção.

No Carf, o ITR é um tributo que pouco aparece nas discussões recentes – o uso do termo ITR no campo “pesquisas de acórdão” do site do Carf retorna, na maior parte, processos com fatos geradores anteriores a 2010. Mas justamente por causa da municipalização e do aumento de fiscalização, o ITR deverá ganhar mais espaço na pauta de discussões.

No ano passado, a 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) analisou diversos casos[2] em que se discutia a necessidade de apresentar o Ato Declaratório Ambiental (ADA) para excluir a Área de Preservação Permanente (APP) da base de cálculo do ITR.

Em tais casos, a exigência do fisco estava baseada no art. 17-O, caput e §1º da Lei nº 6.938/00, norma até hoje em vigor, que exige o ADA para a redução do imposto rural. Entretanto, essa obrigatoriedade de apresentação do ADA caiu com a jurisprudência estabelecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) – vide REsp nº 587.429/AL – e o parecer emitido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional PGFN/CRJ 1329/2016. Embora nem a decisão do STJ nem o parecer da PGFN sejam formalmente vinculantes ao Carf, a 2ª Turma da CSRF, em votação apertada, deu ganho de causa ao contribuinte, ao decidir pela necessidade de se preservar a coerência da interpretação jurisprudencial do sistema jurídico e dispensar a exigência do ADA para reconhecer a não incidência do ITR em área de preservação ambiental (desde que válida a prova da área por meio de laudo técnico elaborado nos termos da legislação).

A decisão foi também um avanço, mas as demais controvérsias sobre o ITR permanecem. Espera-se que o Carf, como órgão responsável pela revisão dos lançamentos de cobrança do ITR, continue a dar a mais correta interpretação das disposições normativas vigentes, mantendo os contornos constitucionais e legais do tributo, sem restrições ou invasões.

Em mais um ano de pandemia, a correta análise dos critérios de aferição do ITR é medida das mais necessárias para que o agronegócio siga avançando no Brasil.

 


[1] https://www.cnabrasil.org.br/boletins/pib-do-agronegocio-alcanca-participacao-de-26-6-no-pib-brasileiro-em-2020

[2] Entre os quais, Ac. 9202-009.243, 9202-009.343 e