É diretriz fundamental do Código Tributário Nacional que os tributos não se destinam a punir qualquer ato ilícito:

“Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”

Os tributos, portanto, não podem servir de instrumento para penalizar aqueles que infringem as leis. As taxas, como espécie de tributo, se incluem nessa regra.

Causou, assim, surpresa a recente decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) nas ações diretas de inconstitucionalidade ADI 4.785, ADI 4.786 e ADI 4.787.

Neste breve artigo, trataremos apenas da possibilidade de se justificar, com base em incidentes ocorridos em determinado segmento econômico, a cobrança de taxas sem equivalência com o custo (ainda que estimado/aproximado) do serviço a ser custeado.

Isso porque, há não mais que três anos, o mesmo plenário do Supremo Tribunal Federal deliberou sobre a impossibilidade de as taxas pelo poder de polícia serem cobradas em patamares superiores ao custo do serviço estatal a ser remunerado.

Naquela ocasião, quando tivemos a oportunidade de representar a entidade autora da ação, mais especificamente no julgamento da ADI 6.211/AP, o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que a arrecadação decorrente das taxas pelo poder de polícia não pode ser desconectada do custo da atividade estatal a ser custeada.

Sobre esse julgamento, o próprio site do Supremo Tribunal Federal noticiou:

“O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais dispositivos da Lei estadual 2.388/2018 do Amapá, que instituiu taxa sobre atividade de exploração e aproveitamento de recursos hídricos (TFRH). Por maioria de votos, o Plenário, na sessão desta quarta-feira (4), julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6211, ajuizada pela Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Energia Elétrica.

Contraprestação

Prevaleceu no julgamento o voto do relator, ministro Marco Aurélio. Segundo ele, a taxa, ao contrário do imposto, tem caráter contraprestacional, ou seja, deve estar atrelada à execução efetiva ou potencial de um serviço público específico ou, como no caso, ao exercício regular do poder de polícia. Na base de cálculo da taxa, deve-se observar, portanto, correlação entre custos e benefícios, em observância ao princípio da proporcionalidade.

Para o ministro, no caso do Amapá, em que a taxa é calculada em função do volume dos recursos hídricos empregados pelo contribuinte, os dados evidenciam a ausência de proporcionalidade entre o custo da atividade estatal que justifica a taxa e o valor a ser despendido pelos particulares em benefício do ente público. O montante arrecadado, afirmou, é dez vezes superior ao orçamento anual da secretaria de gestão do meio ambiente do estado. ‘Nada justifica uma taxa cuja arrecadação total ultrapasse o custo da atividade estatal que lhe permite existir’, ressaltou.

Caráter arrecadatório

O relator observou que a própria redação da lei demonstra o caráter eminentemente arrecadatório do tributo instituído, ao prever o aporte do produto da arrecadação para o fomento de iniciativas municiais relacionadas à política estadual de recursos hídricos e para incremento do denominado fundo de recursos hídricos. ‘Admitiu-se que parcela substancial do arrecadado sequer seja direcionada ao custeio das despesas atinentes ao controle e à fiscalização das atividades de exploração a aproveitamento de recursos hídricos’, assinalou.

Ficou parcialmente vencido o ministro Edson Fachin, que considerava constitucionais os artigos 2º, 3º e 5º da norma, que, a seu ver, apenas preveem o exercício do poder de polícia e explicitam sua forma de exercício ou realização.”

Nada mais apropriado e acertado, já que, diferentemente dos impostos que são fonte primária para a manutenção dos entes estatais, as taxas são tributos sinalagmáticos/referíveis/contraprestacionais, que exigem que sua arrecadação se destine a cobrir o custo do serviço a ser custeado.

Dada a relevância, transcrevemos trechos de alguns dos votos proferidos no julgamento da ADI 6.211/AP.

  • Trechos do voto proferido pelo ministro Marco Aurélio Mello:

“Diverso há de ser o entendimento quanto ao alegado na peça primeira a respeito da higidez constitucional do ato atacado na acepção material, levando-se em conta o princípio da proporcionalidade, no que se traduz na verificação da adequada equivalência entre o valor exigido do contribuinte e os custos alusivos ao exercício do poder de polícia a justificar a instituição do tributo.

Atentem para o disposto no artigo 145, inciso II, da Constituição Federal, a revelar a noção de taxa, cuja exigência se faz orientada pelo princípio da retributividade.

(...)

Daí afirmar-se que a taxa possui caráter contraprestacional e sinalagmático: atrelando-se à execução efetiva ou potencial de um serviço público específico e divisível, ou, como é o caso, ao exercício regular do poder de polícia, o valor do tributo deve refletir, nos limites do razoável, o custeio da atividade estatal de que decorre. Segundo indica Hugo de Brito Machado, ‘nada justifica uma taxa cuja arrecadação total em determinado período ultrapasse o custo da atividade estatal que lhe permite existir’, havendo de se observar, na determinação da base de cálculo, ‘ainda que por aproximação e com certa margem de arbítrio’, correlação entre custos e benefícios, sob pena de ter-se descaracterizada a natureza do tributo (MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 443)

Ante a necessidade de guardar-se, na definição dos valores a serem cobrados, íntima relação com o cumprimento da atividade que lhe dá ensejo, verificada dificuldade ou mesmo impossibilidade de determinar-se com precisão o custo alusivo à atividade estatal, surge viável à Administração Pública estabelecer quantia aproximada, proporcional, vedada a adoção de base de cálculo própria de imposto, na forma do artigo 145, § 2º, da Lei Maior.

Tem-se montante quase dez vezes superior ao orçamento anualmente destinado à Secretaria de Estado do Meio Ambiente, órgão incumbido, na forma do artigo 3º do Diploma atacado, de ‘planejar, organizar, dirigir, coordenar, executar, controlar e avaliar as ações setoriais relativas à utilização de recursos hídricos’ e de ‘registrar, controlar e fiscalizar a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos’. A partir da análise das peças orçamentárias relativas aos anos de 2018 e 2019, os recursos destinados à Secretaria compreenderam, respectivamente, 8,3 milhões e 10,5 milhões de reais – alcançando-se a média de apenas 9,4 milhões de reais anuais.”

  • Trecho do voto proferido pelo ministro Luis Roberto Barroso:

“Aqui, o que se verifica é que a pretensão de arrecadação com esta taxa, tal como no caso do Pará, supera o orçamento de diversas Secretarias de Estado. A desproporcionalidade parece evidente. Não é que supera o orçamento da Secretaria encarregada da fiscalização, supera o orçamento de diversas Secretarias somadas. Acho que isso descaracteriza o caráter de taxa como tributo vinculado proporcional à atividade desempenhada.”

  • Trecho do voto proferido pela ministra Rosa Weber:

“Ademais, os dados financeiros estimados pela autora e não impugnados pelo Governador ou pela Assembleia Legislativa do Estado parecem indicar não existir correlação entre o valor da taxa e o custo do poder de polícia a justificar a sua imposição. Não há a necessidade de que, nas taxas, exista uma correspondência exata do valor cobrado com o custo do serviço prestado ou posto à disposição do contribuinte ou do poder de polícia exercido, mas uma proporcionalidade e razoabilidade mínimas são necessárias, e não se fazem presentes.

  • Trecho do voto proferido pelo ministro Luiz Fux:

“Senhor Presidente, assento que não há uma revelação de equivalência entre os custos da atividade estatal e a capacidade contributiva do contribuinte. Esse parâmetro utilizado acabou gerando, efetivamente, efeito confiscatório.”

  • Trechos do voto proferido pelo ministro Ricardo Lewandowski:

“Superada a questão da competência, rememoro que a taxa, como contraprestação a uma atividade do Poder Público, não pode exceder a relação de equivalência razoável que deve permear o custo real da atuação estatal e o valor que o Estado pode exigir de cada contribuinte, considerados, para esse efeito, os elementos pertinentes às alíquotas e à base de cálculo fixadas em lei. Em outras palavras, se a quantificação da taxa ultrapassar o custo do serviço colocado à disposição do contribuinte, configurando, assim, situação de onerosidade excessiva, estará demonstrada, a meu sentir, ofensa à cláusula fundamental proibitiva do não confisco, prevista no art. 150, IV, da CF/88:

(...)

O contexto fático revela, portanto, desproporção e ausência de correlação (referibilidade) entre os fatos geradores do tributo, os valores a serem arrecadados e o custeio dos serviços de fiscalização prestados pela SEMA (calculado em função do volume de produção, nos termos do art. 6º, da legislação impugnada), de modo que, na dimensão do custo/benefício, aplicável às taxas, vislumbra-se também a violação do princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 2º, da CF/88).”

  • Trecho do voto do ministro Dias Toffoli:

“Embora a lei possa se valer do volume de recursos hídricos utilizado para estabelecer o valor da TFRH – porque, em tese, quanto maior esse volume, maior é o exercício do poder de fiscalização pela Administração Pública –, tem ela de respeitar a proporcionalidade e a razoabilidade. Nesse sentido, o montante efetivamente cobrado a título da taxa não pode se desgarrar do custo da atividade estatal que se busca custear.”

É fora de dúvida que seria praticamente impossível haver exatidão na paridade entre o custo do serviço a ser custeado e o valor a ser arrecadado com a taxa.

Essa dificuldade prática, porém, nem de longe pode servir de justificativa para permitir a falta de equivalência – ainda que razoavelmente aproximada – entre o valor arrecadado com a taxa e o custo da atividade estatal a ser remunerada, sob pena de transformá-la em verdadeiro imposto.

Ocorre que, embora tudo o que foi comentado acima reflita a decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre as taxas pelo poder de polícia, ao que parece, algo fez com que alguns ministros da Suprema Corte mudassem radicalmente de opinião.

Nas sustentações dos votos proferidos pelos ministros no julgamento das recentes ADI 4.785, ADI 4.786 e ADI 4.787, com exceção do procurador-geral da República, que expressamente verbalizou ter mudado de opinião sobre o tema, os ministros que votaram pela possibilidade de as taxas pelo poder de polícia ultrapassarem o custo do serviço estatal a ser remunerado não deixaram claro o motivo para a mudança de entendimento.

Ao que parece, um dos fatores determinantes para que os ministros validassem a cobrança das taxas sob julgamento naquelas três ações diretas de inconstitucionalidade foi a ocorrência de incidentes ambientais.

Isso se pode extrair da síntese dos votos verbalizada na sessão plenária do dia 01/08/2022 – o acórdão ainda não foi formalizado –, em especial dos ministros Edson Fachin, Luiz Fux e Cármem Lúcia.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal basearam-se na ocorrência de incidentes ambientais para justificar a cobrança de taxa pelo poder de polícia em patamares estranhos e distantes do custo do serviço estatal a ser custeado.

Ocorre que, como posto no artigo 3º do Código Tributário Nacional, tributo não é o instrumento legal adequado para sanção de eventual ato ilícito.

Do julgamento das ADI 4.785, ADI 4.786 e ADI 4.787 surge então a dúvida: qual é exatamente o entendimento do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de as taxas pelo poder de polícia serem cobradas em patamares superiores – e por vezes, inclusive, muito superiores – ao custo estimado do serviço público a ser remunerado?

Com o cenário jurisprudencial que temos hoje, a resposta a essa indagação não é clara. Paira grande incerteza aos aplicadores do direito sobre qual é, afinal, o entendimento do plenário do Supremo Tribunal Federal em relação ao tema.

Se antes consideraram, por exemplo, na ADI 6.211/AP, a taxa inconstitucional por suplantar por mais de dez vezes o valor total do orçamento anual do ente estatal que realizaria o poder de polícia custeado pela taxa, agora, nas ADI 4.785, ADI 4.786 e ADI 4.787, entenderam que não haveria mal algum em que as taxas fossem cobradas em valores significativamente superiores ao custo do serviço a ser custeado.

Diversas possíveis questões emergem:

  • Entenderam os ministros do Supremo Tribunal Federal que apenas as taxas minerárias poderiam ser cobradas em patamares mais elevados do que o custo da atividade fiscalizatória em virtude dos incidentes ocorridos?
  • Deixaram os ministros de considerar a equivalência entre o valor arrecadado com as taxas pelo poder de polícia e o custo do serviço público a ser remunerado como baliza constitucional intransponível?
  • Como e o que poderá ser feito para que outros estados e os diversos municípios não enveredem com legislações semelhantes para instituir taxas com essa mesma feição, a ponto de tornar o sistema constitucional tributário ainda mais conflituoso?
  • A diferença entre o julgamento da ADI 4.785, ADI 4.786 e ADI 4.787 e os julgamentos anteriores sobre as taxas pelo poder de polícia reside em questão probatória sobre a falta de equivalência entre o custo do serviço estatal e o montante a ser arrecadado?

Perguntas como essas precisam urgentemente de respostas do plenário do Supremo Tribunal Federal. Espera-se, portanto, que os ministros voltem a apreciar o tema, seja no contexto de embargos de declaração a serem opostos nessas três ações diretas de inconstitucionalidade ou numa próxima assentada sobre o assunto, pois, pior do que a repentina mudança de orientação jurisprudencial da corte máxima de um país, é deixar os jurisdicionados ao sabor da dúvida.

Afinal, tudo o que se busca com as ações diretas de inconstitucionalidade é segurança jurídica para saber a ratio decidendi do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre o tema em julgamento.