Em 1981, a Assembleia Geral da ONU designou 29 de maio como o Dia Mundial da Energia. O objetivo foi difundir os ideais de consumo consciente e produção sustentável, por meio de processos menos nocivos ao meio ambiente. Passados mais de 40 anos da criação desse marco, os países experimentam o que se convencionou chamar de "transição energética", conceito que remete ao aumento da participação de fontes renováveis na matriz de energia.

No Brasil, as operações com energia elétrica são submetidas a detalhado arcabouço regulatório, que compreende uma série de encargos e componentes tarifários cuja destinação vai desde o custeio da estrutura setorial até a promoção de políticas públicas.

Não é surpresa que a complexidade regulatória acabe se desdobrando no campo tributário. Nele ocorrem importantes discussões sobre o tratamento dado a determinadas rubricas que oneram o consumo de energia no país.

A coluna deste mês busca traçar um breve panorama sobre o entendimento das turmas integrantes do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) a respeito da possibilidade de tomada de crédito de PIS e Cofins sobre os pagamentos a título de demanda contratada, também conhecida como “reserva de potência”.

O assunto, vale lembrar, tem contornos bem conhecidos no campo do ICMS, por causa do julgamento do Tema 176 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Na ocasião, foi fixada a tese de que a demanda de potência elétrica não é passível, por si só, de tributação via ICMS, porquanto somente integram a base de cálculo desse imposto os valores referentes àquelas operações em que haja efetivo consumo de energia elétrica pelo consumidor”.

Contudo, para fins de crédito de PIS e Cofins, a matéria parece estar distante de uma posição unânime.

Os contratos de demanda estabelecem a quantidade de potência que a distribuidora deve assegurar a determinado usuário da rede, tendo como parâmetro o perfil de consumo do contratante. Encargos dessa natureza decorrem de imposição legal[1] e são atribuídos a unidades que recebem energia em grande intensidade.

Segundo esclarecimentos da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), os valores têm relação direta com os custos da infraestrutura de rede colocada à disposição do consumidor para suprir determinado fluxo de energia. O montante cobrado, assim, não abarca diretamente a energia fornecida, mas sim a disponibilização de certa potência mínima. Cobra-se, portanto, por essa disponibilização, ainda que a carga não seja integralmente utilizada. O faturamento é destacado na conta de energia, mediante emprego da tarifa ”binômia”.[2]

Com a SC COSIT 204/21, a Receita Federal do Brasil (RFB) estabeleceu que não seria autorizada a apropriação de créditos sobre demanda contratada. Autoridades federais defendem que o registro de créditos sobre fornecimento de energia elétrica tem previsão específica na Lei 10.833/03 e na Lei 10.623/02. De acordo com essa interpretação, a lei restringe esse direito à energia elétrica consumida nos estabelecimentos da pessoa jurídica.  

Não se tem notícia de precedentes próximos sobre a matéria analisados pela Câmara Superior (CSRF). No histórico recente do Carf, porém, turmas ordinárias da 3ª Seção se manifestaram favoravelmente ao registro do crédito.

Em julgamento do dia 22 de junho de 2021, a 2ª Turma Ordinária da 3ª Câmara (Acórdão 3302-011.168), por maioria de votos,[3] ressaltou que a demanda de potência, embora não se confunda com a energia consumida, é despesa necessária e de caráter obrigatório por força das resoluções da Aneel. Por esse motivo, essa demanda não poderia ser desassociada da energia empregada no processo produtivo para fins da tomada do crédito.

Poucos meses antes, a 1ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 3ª Seção de Julgamento havia proferido o Acórdão 3201-007.440. O voto vencedor sustenta que o dispêndio mencionado não é “opção ou uma discricionariedade do consumidor”. Frisa-se o seu caráter obrigatório, que tem como propósito a manutenção do funcionamento do estabelecimento, além de “caráter social”.

Fundamentação muito similar está presente em acórdão[4] publicado no fim do ano passado pela 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção.

Nos dois últimos casos mencionados, porém, fica a dúvida se o crédito teria sido reconhecido a partir do enquadramento do gasto como insumo, na forma do inciso II do art. 3º da Lei 10.833/03 e da /02, ou se teria sido admitido devido à previsão dos incisos IX e III das respectivas normas, que se referem à energia consumida nos estabelecimentos.

Por outro lado, os últimos anos também proporcionaram resultados desfavoráveis à tomada crédito sobre essa rubrica.

Pelo Acórdão 3301-010.188, publicado em 29 de julho de 2021, a 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara negou provimento a recurso voluntário do contribuinte e manteve a glosa de créditos sobre parcela referente à demanda contratada. Pelas brevíssimas explicações do voto vencedor, prevaleceu a interpretação de que essa parcela não seria creditável, pois não representaria energia efetivamente consumida no estabelecimento produtivo.[5]

A nosso ver, os debates que envolvem a matéria ainda devem passar por amadurecimento, sobretudo no âmbito de um tribunal administrativo reconhecido pela profundidade técnica com que orienta as decisões.

Da leitura dos precedentes mencionados, por exemplo, nota-se a falta de ponderações em relação ao fato de que a demanda de potência é elemento permanente em toda conta de energia, computada inclusive na tarifa cobrada de usuários de menor consumo, pertencentes ao chamado grupo B[6] – ainda que não seja segregada na fatura destinada a esses consumidores.

Diante dessas circunstâncias, negar o crédito a certo grupo de usuários não seria afronta à isonomia tributária assegurada no artigo 150, II, da Constituição Federal de 1988? Teria sido esse o propósito do legislador federal ao instituir essa possibilidade de crédito?

Vamos além: ainda que se admita que a parcela da reserva de potência não permita o crédito como energia consumida, qual impeditivo para que esse pagamento seja entendido como insumo? Afinal, não se estaria diante de uma despesa essencial e relevante, incorrida em razão de imposição legal?

É evidente que as peculiaridades de cada caso interferem na avaliação da discussão jurídica e, como consequência, nos argumentos para sustentar o direito de crédito. De toda forma, é uma premissa importante que os dispêndios dos grandes consumidores de energia sejam examinados a partir de uma visão ampla e bem fundamentada sobre esse tipo de obrigação.

 


[1] Resolução Normativa Aneel 1.000/21:

Art. 127. A distribuidora deve celebrar com o consumidor responsável por unidade consumidora do grupo A e demais usuários, com exceção das unidades consumidoras do Grupo B, os seguintes contratos: (...) I - Contrato de Uso do Sistema de Distribuição – CUSD; (...)

Art. 146. Além das cláusulas do art. 145 e, caso aplicável, do art. 132, o CUSD deve conter as seguintes disposições: (...) VI - tensão contratada.

[2] Modelo tarifário em que são especificados os valores a título de energia consumida e demanda de potência, conforme definição do art. 11, do Decreto 62.724/18.

[3] Placar de 5x3, vencidos os conselheiros Vinicius Guimarães, Jorge Lima Abud e Larissa Nunes Girard.

[4] Processo 10183.723258/2013-63 Recurso Voluntário Acórdão 3401-010.649 – 3ª Seção de Julgamento / 4ª Câmara / 1ª Turma Ordinária Sessão de 27 de setembro de 2022

[5] Segundo consta no voto condutor: “No tocante aos custos com energia elétrica correspondentes à demanda contratada e à utilização do sistema de distribuição, entendo que não permitem o creditamento, diante da previsão expressa do inciso III, do art. 3° das Leis de regência do PIS e Cofins, no sentido de energia efetivamente consumida nos estabelecimentos da pessoa jurídica. Logo, deve ser mantida a glosa.”

[6] Ainda de acordo com as explicações da Aneel no julgamento do RE 598.324:”A aglutinação dos dois atributos – energia e demanda – em uma tarifa monômia se dá através do uso do conceito de fator de carga. Esse é essencialmente o fator que determina a relação entre o consumo médio e o consumo de pico de um determinado consumidor, como explicado a seguir. (...) Assinale-se que tarifas monômias apesar de não trazerem, explicitamente, os montantes referentes às parcelas associadas a demanda faturada, elas as embutem. Os consumidores faturados através dessas tarifas também pagam pelos custos referentes ao uso das redes. Isso acontece porque os preços fixados pela Aneel para a tarifa monômia já embutem os custos com a demanda, conforme se confirma na publicação da Aneel, intitulada Cadernos Temáticos, 4, p.14:”