O processo administrativo é um direito fundamental do cidadão, está lá bem expresso no art. 5º da Constituição Federal, que em breve completará 35 anos de existência. Para nós, profissionais da área jurídica, isso é bem óbvio, mas aparentemente não o é para algumas pessoas públicas, aquelas, inclusive, que deveriam ser as primeiras a zelar pelo fiel cumprimento do Estado Democrático de Direito. Não fosse por dever ético, o seria por dever constitucional. O artigo 37 da Constituição assim determina: a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...).

De toda a forma, parece bom que se repita o óbvio. O artigo 5º da Constituição Federal, inserido no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), é muito claro ao garantir que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (inciso LIV) e que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (inciso LV).

Para os que não tiveram a oportunidade de conhecer o texto constitucional – embora não se possa desconhecer a lei, conforme o artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto 4.657/42) – é bom lembrar também que se trata de cláusula pétrea, ou seja, considerada tão indispensável que não pode ser alterada nem por emenda constitucional.

O contribuinte (cidadão ou empresa) não enfrenta uma relação de igualdade perante o fisco. Não é preciso muita reflexão para constatar o que é evidente: por mais poderosa e grande que seja a empresa, o poder público (e não por outro motivo se chama poder) sempre pode mais. Tem mais privilégios, que alguns chamam de prerrogativas. E o que não dizer, então, do pequeno contribuinte, pessoa física ou jurídica?

Muito se fala, mas pouco se explica. Desconhecemos se alguns dos nossos grandes expoentes do Poder Executivo, que vão a público acusar os contribuintes de sonegadores ou até detentos (ladrões, presidiários?), para além do fato de desconhecerem a Constituição, já vivenciaram a situação de algum amigo ou familiar ser acusado injustamente por dívida tributária.

Quantos patrimônios, quantas vidas foram destruídas por acusações indevidas? Um único agente fiscal tem o poder de lavrar um ato administrativo (auto de infração ou lançamento, que são os nomes técnicos).

E para as empresas, investidores no país – talvez ex-investidores – como justificar uma cobrança maior do que o patrimônio líquido ou maior do que toda a receita de anos? E como justificar uma cobrança fundada em interpretação enviesada da legislação, já criada para suscitar esse tipo de acusação? São esses mesmos agentes que pregam a aproximação entre poder público e o contribuinte? Em confiança?

Difícil confiar em quem nos estende a mão em um dia dizendo “quero fazer uma transação porque nós dois podemos estar errados ou certos” e no dia seguinte vai a público dizer que somos sonegadores ou detentos. Ou que nos acusam indevidamente para insistir em uma transação no futuro? É muito injusto negociar sem condições de igualdade e sob coação.

De forma alguma se defende nesse texto a proteção a sonegadores ou devedores contumazes. Apenas é preciso separar o joio do trigo, e os discursos públicos oportunistas de ocasião não têm servido a essa finalidade.

É exatamente por isso que o sistema se estrutura, como manda a Constituição, com o vínculo do devido processo legal e de todas as garantias pétreas antes mencionadas. O agente público tem, sim, fé pública. O que isso significa? Que ele seja dotado de poderes divinos ou miraculosos para saber a diferença entre o bem e o mal e esteja acima de qualquer escrutínio? Claro que não. A presunção de legitimidade do ato administrativo é uma prerrogativa da Administração Pública para que possa exercer a sua função com autonomia: atender ao interesse público, sem interferências indevidas.

Mas justamente porque esse ato unilateral, praticado por uma única pessoa, pode estar errado, existe o devido processo legal administrativo. E o que é isso? É uma das melhores expressões do Estado de Direito: a possibilidade de a Administração rever os próprios atos, como está expresso no art. 53 da Lei 9.784/99 e na súmula 473 do Supremo Tribunal Federal.

É a possibilidade de revisão com o exercício do contraditório e da ampla defesa por aquele que teve sua esfera particular e patrimonial invadida, o contribuinte. Já aprendemos há muitos anos, com nossos professores de direito constitucional e de processo civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e da Pontifícia Universidade de São Paulo, que o que legitima as ações do Estado é a participação daquele para quem essas ações são dirigidas. E o conceito de participação é o pleno exercício do direito de defesa, a efetiva possibilidade de contraditar as acusações.

São diversas as legislações que regulam o processo administrativo. O que nos chama a atenção é que, especificamente na esfera federal, a legislação em vigor seja o Decreto 70.235/72 (recepcionado pela Constituição Federal como lei federal). Essa legislação vem sendo atualizada ao longo do tempo, mas o paradoxo que nos alarma é o fato de ser uma legislação editada ao tempo da ditadura civil-militar, sendo questionada hoje por autoproclamados democratas.

E a legislação original já previa a paridade nos julgamentos. Pontos de vista diferentes, perspectivas diferentes, é algo muito caro à democracia. O que obviamente não significa parcialidade. A interpretação e aplicação do direito nem sempre é tarefa fácil. As visões de mundo nem sempre são as mesmas. Desde que haja o compromisso técnico e ético com a imparcialidade, é extremamente saudável que haja divergência e discussão, para que se chegue à melhor solução.

É muito triste e desanimador que, à essa altura – e novamente, às vésperas dos 35 anos da Constituição Federal – muitos não a conheçam. E não a conhecer é violá-la.

Se estivessem detentos, os bons contribuintes, que devem ter o direito de defesa, não estariam sendo os artífices da construção e do crescimento deste país, com todas as suas vicissitudes.

Contribuinte não é litigante de segunda categoria.