Uma das principais inovações da Medida Provisória 1.152/22 (MP 1.152/22) é a positivação do “delineamento da transação controlada”.

Na sistemática anterior, as regras dos artigos 18 a 22 da Lei 9.430/96 se limitam a estabelecer os critérios para o controle dos preços praticados nas transações entre partes relacionadas na apuração do IRPJ e da CSLL. A aplicação desses critérios pode resultar na indedutibilidade de despesas, no caso de os preços serem superiores na importação, ou no reconhecimento a maior de receitas, no caso de os preços serem inferiores na exportação.

Com base no art. 6º da MP 1.152/22 e em linha com o modelo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a aplicação da nova política brasileira de preços de transferência depende da observância de uma metodologia determinada, em que primeiro se delimita a transação controlada e depois se realiza um exame de comparabilidade, para verificar a aderência às condições de mercado. Pode haver, por fim, ajustes para mais ou menos na base de cálculo desses tributos, após a aplicação dos métodos previstos no art. 11.

O delineamento das transações controladas

Os artigos 7º e 8º da MP tratam do delineamento da transação controlada.

Primeiro, de acordo com o art. 7º, deve-se compreender os elementos jurídicos e fáticos relevantes da transação para determinar o objeto do controle. Para isso, esse dispositivo contém um rol exemplificativo de elementos indicativos:

  • a forma jurídica e os termos contratuais;
  • as funções desempenhadas e os riscos alocados;
  • os bens transacionados;
  • as circunstâncias econômicas das partes; e
  • a estratégia de negócio.

Depois, segundo o art. 8º, questiona-se se partes independentes realizariam uma transação similar, diante das opções realisticamente disponíveis. Essa análise permite “desconsider[ar a transação] ou substitu[í-la] por uma [...] alternativa”.

O delineamento da transação, portanto, envolve também a competência para corrigir as transações, segundo critérios econômico-comerciais, com o objetivo de desconsiderá-las como se nada existisse ou trocá-las por outras.

A correção da transação, assim, não requer a verificação de situações de vício da vontade, quando há uma declaração enganosa para ocultar que nada ocorreu ou que a transação realizada é diferente daquela informada (hipóteses de simulação e dissimulação, respectivamente).

O pressuposto é simplesmente que a operação não passe pelo teste de comparabilidade em relação às opções “realisticamente disponíveis”, considerando as condições de mercado.

A novidade do poder de correção das autoridades fiscais

É a primeira vez que o sistema tributário brasileiro confere esse tipo de autorização às autoridades fiscais, o que levanta uma série de incertezas sobre os limites dessa competência, especialmente em relação à legalidade e à liberdade de exercício de atividade econômica.

Há inúmeras jurisdições que ordinariamente têm regras similares com a atribuição de competência não somente atreladas à política de preços de transferência, como também regras gerais antielisivas (GAARs, do inglês general antiavoidance rules). Em alguns casos, porém, a construção jurisprudencial é fonte de normas semelhantes.

Ao mesmo tempo, a experiência brasileira recente, colhida da atuação de tribunais administrativos, tem importado institutos estrangeiros – como o propósito negocial, a análise da substância sobre a forma, a fraude à lei, o abuso de direito, o abuso de forma, a interpretação teleológica e a interpretação econômica do direito.

Essa orientação, porém, não encontra amparo no direito positivo (e, portanto, é discutível em termos constitucionais) e tem implicado a tutela de interesses arrecadatórios, em prejuízo dos sujeitos passivos.

A aplicação desses institutos, em linhas gerais, reflete a seguinte metodologia:

  • identifica-se, inicialmente, uma economia tributária ocasionada pelo desenho da transação efetuada;
  • a transação efetuada, por sua vez, tem resultado econômico idêntico à transação tipificada ou pressuposta pela lei; e
  • na sequência, questionam-se outras razões, diferentes da economia tributária, de igual ou superior relevância, que justifiquem o desenho da transação. A ausência desses fundamentos ou o entendimento de que não prevalecem em relação aos fins fiscais ou mesmo que são insuficientes para legitimar a decisão autorizariam a autoridade fiscal a desconsiderar a transação e a substituir por outra ou reduzir ou aumentar o escopo das normas jurídicas aplicáveis.

Perceba-se, ainda, que a interpretação teleológica orienta essa atividade de interpretação e aplicação, considerando a identificação dos elementos concretos da transação ou da situação jurídica que a legislação tributária pretendeu capturar.

Essa metodologia de controle de planejamentos tributários não tem respaldo no direito nacional.

Não por outra razão, na visão da Fazenda Pública, o art. 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional (CTN)[1] – incluído pela Lei Complementar 104/01 (LC 104/01) – constituiria uma norma geral antielisiva que endossaria os institutos mencionados anteriormente, sobretudo a exigência de um propósito negocial e a avaliação do abuso de forma.

A regra do art. 116, parágrafo único, entretanto, depende de regulamentação em lei ordinária (“observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”). O Congresso Nacional, na conversão da Medida Provisória 66/02 (MP 66/02), rejeitou os artigos 13 a 19, que faziam essa regulamentação.

O Supremo Tribunal Federal, posteriormente, ao julgar a ADI 2.446, de relatoria da ministra Cármen Lúcia (julgamento em 11 de abril de 2022), concluiu que a regra do art. 116, parágrafo único, do CTN não constitui uma GAAR, mas sim uma “norma de combate à evasão fiscal” restrita às hipóteses de simulação e dissimulação.

Esse contexto evidencia, novamente, que o controle de planejamentos tributários por meio dos institutos estrangeiros mencionados não encontra guarida no sistema tributário brasileiro até o momento.

Ainda que com um escopo mais reduzido por causa dos objetivos da política aqui comentada, não se pode diminuir a relevância do art. 8º da MP 1.152/22, principalmente caso se considere que a modificação da política brasileira de preços de transferência configura a primeira etapa da progressiva confluência com os padrões da OCDE para o controle de planejamentos tributários.

Ainda que não tenhamos clareza dessa condição, neste momento inicial, entendemos que o artigo 8º não estabelece uma norma antiabuso ou antielisiva, nem é direcionada para o controle de planejamentos tributários. Trata-se de um mecanismo de adequação da transação delineada com base no princípio do arm’s length. Esse entendimento deverá ser confirmado pela prática que vier a ser seguida, após aprovada a conversão da MP e iniciada a aplicação da nova política.

O poder de correção das autoridades fiscais e o princípio do arm’s length

É preciso refletir sobre a relação entre o poder de correção e o princípio do arm’s length. Apesar de a competência em discussão permitir que se compreenda e qualifique a realidade para substituir a transação efetuada por uma alternativa mais "adequada", tal como uma regra antielisiva, essa alternativa não constitui a priori um mecanismo para o controle de planejamentos tributários, ainda que eventualmente possa funcionar desse modo.

Essa afirmação decorre dos fundamentos e consequências da tutela do princípio do arm’s length, de acordo com o qual a tributação deve se orientar pelas condições de mercado, conforme os princípios da capacidade contributiva, da igualdade e da livre concorrência.

Além disso, a aplicação das regras de preços de transferência pode gerar uma maior ou menor carga tributária. Em outras palavras, trata-se de um instrumento para a apuração e medição da renda de mercado, independe da economia tributária, como pressuposto ou critério de comparabilidade.

A concessão do poder de correção da operação controlada se traduz também em discricionariedade da autoridade fiscal quando estiver exercitando o processo de determinação dos critérios/conceitos indeterminados adotados pela legislação, como as “características economicamente relevantes”, as “opções realisticamente disponíveis” e o “comport[amento] [...] comercialmente racional”.

Essa inovação igualmente provoca uma importante reflexão sobre a compatibilidade desse poder com a vinculação a que está sujeito o fisco na atividade de lançamento.

A situação é agravada nos casos considerados difíceis, quando não há uma situação comparável no mercado. Em linha com o parágrafo único do art. 8º, “a transação [...] não poderá ser desconsiderada ou substituída exclusivamente em razão de não serem identificadas transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas”. A falta de comparabilidade, portanto, não resulta na percepção de que há um negócio alheio às condições de mercado.

Um novo paradigma para o direito tributário

O direito tributário, assim, tipifica e obedece a critérios extrajurídicos (econômico-comerciais) que determinam a configuração do fato gerador se valendo de uma maior abertura conceitual e de análises casuísticas na atividade de lançamento. Há, dessa forma, um condicionamento a parâmetros econômico-comerciais estranhos à prática da legislação tributária brasileira. Não se desconsidera, ao mesmo tempo, que essa abertura almeja atender ao fim último das regras de preços de transferência que, como mencionado, obedecem ao princípio do arm’s length.

Esse cenário, porém, cria uma maior dinâmica na legislação propriamente, o que se contrapõe à rigidez da lei, já que esta passa a evoluir e se conformar automaticamente à realidade subjacente, sem a atividade legislativa – ao menos diretamente.

Essas particularidades atraem questionamentos sobre a compatibilidade dessa política com o princípio e a regra da legalidade, e o princípio da segurança jurídica.

Como examinaremos em um novo artigo, essa condição deverá se refletir, inclusive, no maior ônus probatório que se coloca sobre a autoridade fiscal, principalmente diante da ausência de um paradigma de mercado. A intensidade desse ônus e a robustez do acervo probatório deverá acompanhar a restrição à liberdade de exercício de atividade econômica: quanto maior a restrição, maior o ônus.

Apesar de partilharmos dessa apreensão – principalmente caso se considere a experiência anterior e a presente envolvendo o tema do planejamento tributário –, em nossa visão, a experiência concreta, a partir da introdução do novo modelo de regras de transferência, esclarecerá em que medida se respeitarão esses limites normativos.

 


[1] “Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”