Lançada em outubro do ano passado como uma iniciativa muito positiva da Receita Federal do Brasil (RFB) para orientar o contribuinte, além de evitar a inadimplência e possíveis litígios, a minuta da portaria que cria o programa federal de estímulo à conformidade tributária, o Pró-Conformidade, tem alguns pontos bastante questionáveis que analisamos neste artigo.

O texto foi submetido à Consulta Pública nº 4/2018 da Receita Federal do Brasil (RFB) para receber opiniões e propostas dos contribuintes, mas desde 31 de outubro, quando o prazo de contribuição se encerrou, nenhum ato normativo foi publicado para ratificar ou modificar a minuta da portaria original que instituirá o programa.

A proposta é inspirada no programa Nos Conformes, instituído pelo estado de São Paulo por meio da Lei Complementar nº 1.320/2018, e do Cadastro Fiscal Positivo, a ser implementado pela Procuradoria da Fazenda Nacional.

Segundo a exposição de motivos da minuta da portaria da RFB, o Pró-Conformidade “busca estimular os contribuintes a adotarem boas práticas com o fim de evitar desvios de conduta e de fazer cumprir a legislação”. Essas “boas práticas” estão relacionadas ao cumprimento das obrigações tributárias principais e acessórias (pagamento dos tributos e apresentação de declarações e informações ao fisco).

De acordo com a minuta, o programa tem como objetivo a realização do crédito tributário, por meio de medidas que facilitam seu pagamento, orientam e apoiam o contribuinte e evitam a constituição de débitos, a inadimplência e o contencioso (administrativo ou judicial). Para isso, os contribuintes serão classificados em categorias (A, B ou C) de acordo com seu histórico recente[1] de relacionamento com o órgão. Para fazer a classificação, a RFB levará em conta os seguintes critérios: (i) registro e manutenção de situação cadastral compatível com suas atividades; (ii) apresentação à RFB de declarações e escriturações com integridade, veracidade e tempestividade; (iii) pagamento integral e tempestivo dos tributos devidos (art. 4º da minuta da portaria).

Os contribuintes classificados na categoria A, de melhor histórico, farão jus aos seguintes benefícios: (i) informação prévia sobre indício de infração apurada pela Receita Federal antes de iniciado o procedimento fiscal, o que viabilizaria a sua regularização pelo contribuinte sem a imposição das penalidades aplicáveis; (ii) atendimento presencial prioritário; (iii) prioridade na análise de demandas pela RFB, inclusive em relação ao recebimento de restituições, respeitadas as prioridades definidas em lei; e (iv) Certificado de Conformidade Tributária emitido pela Receita Federal (art. 12 da minuta da portaria).

Já os contribuintes classificados na categoria C estarão sujeitos “aos rigores da lei”,[2] como a inclusão no Regime Especial de Fiscalização objeto da Instrução Normativa RFB nº 979/2009, a qual impõe, entre outras medidas, manutenção de fiscalização ininterrupta no estabelecimento do sujeito passivo, redução dos períodos de apuração e dos prazos de recolhimento dos tributos, utilização compulsória de controle eletrônico das operações realizadas e recolhimento diário dos respectivos tributos, com controle especial na emissão de documentos comerciais e fiscais.

Esses contribuintes também estarão sujeitos à aplicação de medidas coercitivas, como restrições aos que não regularizem débitos objeto da Cobrança Administrativa Especial, entre elas, a cassação de benefícios fiscais, o arrolamento de bens e a exclusão de programas de parcelamento. Como não há nenhuma previsão sobre o tratamento a ser dispensado aos contribuintes classificados na categoria B, infere-se que eles não terão tratamento diferenciado.

Os pontos da minuta que podem ser considerados frágeis dizem respeito justamente aos critérios previstos para classificar os contribuintes. Sobre a verificação da apresentação de declarações e escriturações com integridade e veracidade, por exemplo, o art. 8º, IV, da minuta estabelece como um dos critérios a serem observados os “resultados dos pedidos de restituição, reembolso e ressarcimento e das declarações de compensação”. Mais uma vez, a RFB, a exemplo da multa isolada prevista no art. 74, §17, da Lei nº 9.430/96,[3] parece pretender penalizar o contribuinte nas hipóteses de mero indeferimento de pedidos de restituição, ressarcimento ou não homologação de compensação.

A adoção desse critério pode configurar violação ao direito de petição previsto na Constituição Federal (artigo 5º, XXXIV), pois acaba criando obstáculos (inclusive de caráter financeiro) para que as empresas apresentem petições ao poder público em defesa de seu direito de reaver tributos indevidamente recolhidos. Transparece, nesse sentido, o viés de sanção política, uma espécie de mecanismo para desestimular o contribuinte a buscar a defesa de seus direitos.

Vale lembrar também que o contribuinte que teve negado o pedido de restituição ou ressarcimento, ou não homologada uma compensação no âmbito da Receita Federal, tem o direito constitucional de demonstrar a legitimidade de seu crédito ou a regularidade da compensação realizada na esfera judicial. Sendo assim, na forma como previsto na minuta da portaria, esse critério pode ensejar violação à garantia da inafastabilidade do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CF).

Para analisar a apresentação de declarações e escriturações de forma tempestiva, será verificado o critério de “retificações reiteradas de declarações” (art. 9º, III). O problema é que, dentro do prazo legal, o contribuinte tem o direito de retificar as declarações sem que elas possam ser consideradas intempestivas, o que descartaria o uso desse critério para fins de classificação dos contribuintes.

Além disso, a previsão de que a classificação considerará períodos anteriores à edição da portaria representa ilegítima retroatividade da norma, uma vez que poderá ensejar a penalização dos contribuintes por condutas praticadas antes mesmo do conhecimento das regras.

A controvérsia maior, no entanto, está relacionada às consequências e penalidades severas impostas aos contribuintes enquadrados na categoria C. Entre elas, a cassação dos benefícios fiscais por meio de ato infralegal (a portaria) e, o que é mais grave, a imposição de sanções mesmo nos casos em que o contribuinte esteja regular perante o fisco, mas recebeu essa classificação.

Não há nem mesmo previsão de comunicação à autoridade competente para aplicação das sanções relacionadas à cassação dos benefícios fiscais, o que pode representar violação ao princípio da legalidade e ao direito de defesa e contraditório.

É importante ressaltar, no entanto, que, após ser informado de sua classificação por meio do e-CAC, o contribuinte poderá requerer a revisão desse enquadramento no prazo de 30 dias, “quando identificar erro na aplicação dos critérios” (art.5º, §§1º e 2º, da minuta da portaria). Assim, embora não haja recurso em face da decisão da RFB para apreciar tal requerimento, a minuta da portaria traz mecanismos de revisão da classificação. É recomendável, porém, que esse requerimento seja processado no efeito suspensivo, a fim de promover o direito ao contraditório e à ampla defesa.

Também não há previsão de divulgação da classificação dos contribuintes a terceiros, como ocorre no programa Nos Conformes. Essa publicidade, desde que o contribuinte não se oponha, pode ser benéfica e trazer vantagens competitivas aos que forem classificados na categoria A.

Em resumo, mesmo considerando que a aproximação entre o fisco e o contribuinte é sempre muito bem-vinda, o programa Pró-Conformidade, como proposto na minuta da portaria que o institui, pode trazer incertezas e gerar questionamentos. Há pontos que precisam de aprimoramento, inclusive para evitar que se cometam injustiças na segmentação dos contribuintes.


[1] Segundo o art. 4º, §3º, da minuta da portaria, histórico do ano corrente até os últimos quatro anos a partir do ano-calendário de 2016.

[2] De acordo com a exposição de motivos da minuta da portaria.

[3] Multa isolada de 50% aplicável sobre o valor do débito objeto de declaração de compensação simplesmente não homologada.