Recentemente publicada, a Portaria RFB 315, de 14 de abril de 2023, regulamenta o oferecimento e a aceitação da fiança bancária e do seguro-garantia no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB).

Os requisitos para a formatação e aceitação da apólice de seguro ou da carta de fiança, ressalvadas algumas especificidades do contexto administrativo, não diferem muito daqueles que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) estabeleceu ao formatar essas garantias para fins judiciais (conforme portarias PGFN 164/14 e PGNF 644/09).

A regulamentação é bem-vinda, pois procura suprir lacuna relevante em nosso ordenamento sobre a aceitação dessas modalidades de garantia no âmbito da própria Receita Federal do Brasil. No entanto, nos parece pertinente fazer alguns comentários com o intuito de contribuir para o aprimoramento da regulamentação.

Âmbito de aplicação prática – pontos de destaque

A regulamentação traz balizamentos relevantes para os casos de garantia (i) de créditos tributários em procedimentos de transação tributária; (ii) para substituição de bens e direitos em processo de arrolamento fiscal; e (iii) em procedimentos aduaneiros, como na fiscalização de combate às fraudes aduaneiras, na garantia de regimes aduaneiros especiais, na habilitação para operar no despacho aduaneiro de remessas expressas ou na exigência de valores correspondentes a direitos antidumping.

Cabe um destaque especial para o capítulo referente à substituição de bens em processos de arrolamento perante a RFB.

Uma vez submetido ao processo de arrolamento fiscal (quando o total de seus débitos administrados pela RFB supera R$ 2 milhões e, simultaneamente, 30% do seu patrimônio) o contribuinte tem seus bens sujeitos a regime especial de controle, de modo que qualquer alienação, oneração ou transferência passa por monitoramento da autoridade administrativa, sob pena de propositura de medida cautelar fiscal.

Para mitigar as limitações relativas à livre disposição dos bens (informação junto à RFB e trâmites de liberação com os órgãos de registro), é comum a apresentação de garantia em substituição. Ocorre que, até bem pouco tempo, só havia previsão assertiva para a substituição por depósito judicial, demandando, por vezes, o ajuizamento de ação judicial para se viabilizar a substituição por apólice ou fiança bancária.

Com a alteração promovida pela Instrução Normativa RFB 2.122/22, a aceitação de tais garantias passou a contar com previsão expressa. O advento da Portaria RFB 315/23, por sua vez, complementa essa norma para lhe conferir plena eficácia e aplicabilidade prática.

Por outro lado, a apresentação de garantia, por seguro ou apólice, no contexto de débitos relativos ao contencioso administrativo parece não encontrar maior relevância empírica, especialmente se considerarmos que a simples tramitação regular do contencioso administrativo viabiliza a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, como disposto no art. 151, II, do Código Tributário Nacional (CTN).

Além disso, essas modalidades sequer evitam a exigência de correção monetária, como ocorre nos casos de garantia por depósito.

O desestímulo a essa apresentação, no curso do contencioso administrativo, se acentua se considerarmos que foi estabelecido procedimento de liquidação antecipada da garantia pelo simples encerramento desse processo, como se não houvesse a prerrogativa de se questionar posteriormente o débito na via judicial (inclusive, aproveitando a mesma garantia para salvaguardar a execução fiscal, no interesse da própria União).

Constata-se que a providência de liquidação antecipada pelo fim do contencioso administrativo já nasce com duplo anacronismo:

  • primeiro porque disciplina contexto de reduzida verificação empírica; e
  • segundo porque prevê a agressiva medida de liquidação antecipada ao término do contencioso, menosprezando o princípio da inafastabilidade da jurisdição.

O próprio regime do depósito recursal estabelecido anteriormente no art. 33, §2º, do Decreto 70.235/72, embora francamente inconstitucional (como reconhecido pelo STF na ADI 1.976-7), estabelecia a faculdade de se afetar à discussão judicial, ao término do contencioso administrativo, os depósitos antes realizados. É o que dispunha o §4º do art. 43 e continua previsto no §2 º do mesmo dispositivo do Decreto 70.235/72 em relação aos depósitos realizados para liberação de mercadorias ou para evitar correção monetária.

Ainda sobre a liquidação antecipada da garantia

O capítulo referente à “caracterização do sinistro ou liquidação da carta de fiança” (arts. 12 e 13 da Portaria RFB 315/23) é o que mais provoca pontos de reflexão, especialmente em relação à legalidade das disposições ali estabelecidas.

Já comentamos sobre a liquidação antecipada ao término do contencioso administrativo, prevista no art. 12, I da portaria. Mas há outras modalidades de liquidação que também desafiam o contraditório, a legalidade e a própria lógica inerente ao fluxo de cobrança do crédito tributário.

A primeira delas diz respeito aos débitos incluídos em parcelamento. Conforme o art. 12, IV, a, no caso de débitos incluídos em parcelamento, “o não pagamento (...) do valor devido, no prazo de 30 (trinta) dias da data da ciência da rescisão do parcelamento, motivada pelo inadimplemento das obrigações assumidas no respectivo requerimento de adesão” leva à caracterização imediata do sinistro, com a consequente obrigação de pagamento da indenização pela seguradora (ou de liquidação da fiança pela instituição fiadora).

A portaria deveria ressalvar, em respeito ao contraditório e à ampla defesa, que a providência deve aguardar a rescisão definitiva do parcelamento. Não custa lembrar que todos os programas de parcelamento asseguram a prerrogativa de apresentação de defesa regular diante das intimações de rescisão (a própria Portaria RFB 247/22, relativa à transação tributária no âmbito da RFB, assim o faz, como disposto nos artigos 54 a 59).

Outro ponto de atenção reside na previsão do art. 12, II, a, que estabelece o sinistro e liquidação das garantias “no caso de débitos no contencioso judicial”, quando se verifica “o não pagamento (...) no prazo de até 30 (trinta) dias, contado (...) do trânsito em julgado da decisão judicial que cancelar a suspensão da exigibilidade do crédito tributário”.

Tivesse a nossa legislação (ou jurisprudência) evoluído, como tanto já se postulou, a ponto de reconhecer nas apólices ou fianças efeito análogo ao do depósito para fins de suspensão automática da exigibilidade do crédito tributário, quando do oferecimento no curso de ação judicial, a disposição seria quase que isenta de apontamentos.

Bastaria ajustar o texto para esclarecer que essa liquidação ocorreria com o trânsito em julgado da decisão que “reconhecer a procedência da cobrança” em vez de “cancelar a suspensão da exigibilidade do crédito tributário”.

Seria uma simples decorrência do art. 32, §2º, da Lei 6.830/80, combinado com o art. 156, VI do CTN.

Ocorre que a jurisprudência de nossos tribunais (a reboque da Súmula 112 do STJ e de tanta insistência da Fazenda Pública em juízo sobre uma interpretação literal do art. 151, II, do CTN), continua a sinalizar que apenas o depósito integral, em dinheiro, suspende a exigibilidade do crédito tributário, não a fiança ou o seguro-garantia.

No atual cenário normativo e jurisprudencial, portanto, quando se apresenta apólice de seguro ou fiança e se obtém a suspensão da exigibilidade, tem-se que, a rigor, quem suspende a exigibilidade não é a garantia, mas a própria decisão liminar que a reconhece, com fundamento no art. 151, II, do CTN, como contracautela processual, conforme art. 300, §1º, do Código de Processo Civil (CPC).

Nesse contexto, a decisão que “cancela a suspensão da exigibilidade do crédito tributário” não faz (ou, ao menos, não necessariamente) qualquer juízo de valor sobre o mérito do crédito tributário.

Um exemplo típico é a cassação de uma tutela de urgência que havia suspendido a exigibilidade no formato que acabamos de comentar. Com a falta de apresentação de agravo de instrumento (ou com seu desprovimento), essa decisão se torna definitiva (transita em julgado, no sentido lato do termo).

Nessa circunstância, não cabe cogitar da liquidação da garantia. Como, afinal, liquidar uma garantia para pagamento de um débito sobre o qual sequer foi realizado juízo de mérito, isto é, qualquer consideração sobre ser devido ou não o tributo?

Com o cancelamento da suspensão da exigibilidade, caberá simplesmente a retomada dos atos regulares de executoriedade do crédito tributário, com o ajuizamento da execução fiscal, afetação da referida garantia (agora, no contexto de penhora) e suspensão do rito, até o desfecho de mérito da ação ordinária original. Nunca a liquidação antecipada ao próprio juízo de valor, meritório e definitivo, sobre o débito.

Antecipação de garantia – a lacuna permanece

A Receita Federal do Brasil (RFB) deixou passar oportunidade de sanear importante lacuna referente ao hiato entre a finalização do contencioso administrativo e o ajuizamento da execução fiscal. Essa circunstância demanda reiteradamente o ajuizamento de ações cautelares para antecipação de garantia em futuras execuções, visando viabilizar a expedição de certidão de regularidade fiscal (art. 206 do CTN).

Tais ações, que impõem altos custos às empresas (e à própria União), seriam plenamente evitáveis com um ajuste complementar sutil em nossa legislação.

A PGFN tentou sanar, parcialmente, esse problema, por meio do procedimento de “oferta antecipada de garantia”, disciplinado pela Portaria PGFN 33/18.

Ocorre que esse rito, muito simples operacionalmente, por mérito da PGFN, pressupõe a inscrição em dívida. Desse modo, permanece o problema com relação ao intervalo entre a finalização do contencioso administrativo e a inscrição em dívida. Não raro, a questão pode se alongar por vários meses.

Ao editar a Portaria 315/23, a RFB poderia ter estabelecido rito (e sistema) de apresentação antecipada de garantia já na finalização do processo administrativo, estabelecendo prazo célere e preferencial para envio do processo para a PGFN, visando inscrição em dívida e, em seguida, ajuizamento da execução.

Seria a extinção, por completo, das ações cautelares de antecipação de garantia em âmbito federal, o que liberaria os esforços do Poder Judiciário para o julgamento das ações sobre o mérito propriamente dito.

Montante da garantia nos parcelamentos com descontos

As cláusulas de sinistro ou de liquidação de fiança conferem liquidez quase que imediata ao seguro-garantia ou a carta de fiança, bastando verificar o evento e intimar a entidade para pagamento (em 30 dias, conforme regulamentação do art. 12, §2º, da nova portaria).

Não é por acaso que essas garantias, embora não tenham efeito suspensivo automático, têm status assemelhado ao do depósito judicial, nos termos dos arts. 7, II, 9, §3º, e 15 da Lei de Execuções Fiscais.

Assim, a combinação de parcelamento com seguro ou fiança acaba instaurando não apenas uma garantia dos débitos parcelados, mas a certeza do adimplemento do saldo devedor do programa pelo rito da liquidação quase que automática – ressalvado o necessário contraditório, como já apontado –, em caso de eventual exclusão do programa.

Nesse sentido, parece pouco razoável a exigência de que a apresentação de apólices ou fianças nos parcelamentos em curso ocorra pelo saldo, sem considerar os descontos atribuídos nos programas de parcelamento. As rescisões dos programas seriam seguidas pela quase inexorável purgação do débito, tornando excessiva a exigência de garantia do débito pelo valor sem desconto.

Cabe lembrar que a própria RFB, quando regulamentou a transação tributária da Lei 13.988/20 por meio da Portaria RFB 247/22, estabeleceu o norte da “flexibilização das regras para aceitação, avaliação e substituição de garantias” (art. 8, V). A exigência aqui comentada parece ir na contramão dessa regulamentação.

Com base em todo o exposto, conclui-se que o objetivo da regulamentação é louvável, pois procura disciplinar, em boa hora, a aceitação dessas modalidades de garantia no âmbito da própria RFB, especialmente em processos aduaneiros, de transação e de substituição em arrolamentos.

São necessários, porém, aprimoramentos para conferir segurança jurídica aos contribuintes e um adequado tratamento à luz das demais normas que regem direitos e garantias no contexto da constituição e cobrança dos créditos tributários.