Com o objetivo principal de combater o devedor contumaz e fortalecer a cobrança da dívida ativa no âmbito da administração tributária federal, o Ministério da Economia apresentou à Câmara dos Deputados, em março, o Projeto de Lei nº1.646/19. Alguns aspectos do texto merecem atenção especial, como os procedimentos extrajudiciais aplicáveis ao devedor contumaz, definido no PL como “o contribuinte cujo comportamento fiscal se caracteriza pela inadimplência substancial e reiterada de tributos”.

O primeiro ponto a ser destacado diz respeito à caracterização da “inadimplência substancial e reiterada de tributos”, definida no §1º do art. 2º como a existência de débitos em nome do devedor ou de pessoas físicas ou jurídicas a ele relacionadas, inscritos ou não em dívida ativa e em valor igual ou superior a R$ 15 milhões, em situação irregular[1] por período igual ou superior a um ano. A redação desse artigo pode dar margem a equívoco de interpretação, pois o texto não identifica a natureza da relação jurídica entre o devedor e as pessoas físicas e jurídicas que possa justificar o cômputo das dívidas particulares destas para caracterizar a inadimplência reiterada daquele.

A única interpretação compatível com a Constituição Federal e com o sistema tributário nacional, em nossa visão, é a que restringe a possibilidade de considerar a dívida própria de terceiros no cômputo da dívida do devedor à efetiva existência de hipótese legal de solidariedade ou responsabilidade tributária desses terceiros. De fato, o Código Tributário Nacional define taxativamente as hipóteses em que outras pessoas, que não o contribuinte, podem ser responsabilizadas pela dívida tributária, precisamente nos artigos 124 e 128 a 135.[2]

Qualquer outra interpretação violará a autonomia da pessoa jurídica em relação aos seus sócios, acionistas ou empresas coligadas e será inconstitucional. Isso porque a Constituição Federal reserva à lei complementar – no caso, o Código Tributário Nacional – a competência para dispor sobre obrigação tributária (art. 146). Não pode, pois, uma lei ordinária instituir hipótese de responsabilidade legal presumida.

O PL também prevê que os órgãos da administração tributária da União poderão instaurar procedimento administrativo contra o devedor contumaz, a fim de impor restrições administrativas que, se aplicadas, consistem em (i) cancelamento de cadastro fiscal – CNPJ ou CPF; e (ii) impedimento de fruição de quaisquer benefícios fiscais pelo prazo de dez anos.

Para a instauração do procedimento, o PL é muito claro ao exigir não só a caracterização do contribuinte como devedor contumaz como também a presença de indícios da prática de ato ilícito (doloso, fraudulento ou simulado). Esse é outro aspecto que merece atenção: não é a caracterização do devedor como contumaz que autoriza a instauração e posterior aplicação de restrições administrativas, mas a existência de um comportamento efetivamente inidôneo por ele praticado. Aliás, essa é a tônica do PL, expressa em sua exposição de motivos: o objetivo é alcançar contribuintes que praticam atos ilícitos, não aqueles que apenas tenham tributos em aberto.

Embora a instauração do procedimento exija somente a presença de indícios, a efetiva aplicação das restrições depende de prova da prática dos atos ilícitos descritos na norma.[3] Apesar dessa previsão, é de constitucionalidade duvidosa a aplicação de sanções administrativas de tamanha gravidade, que podem impedir a pessoa física ou jurídica de exercer sua atividade profissional ou social, sem que haja controle jurisdicional prévio. Parece-nos clara a violação à garantia do devido processo legal. Não há como se cogitar, em observância satisfatória da ampla defesa e do contraditório, um procedimento – especialmente quando envolve limitação drástica de direitos – em que o julgador não é investido de poderes jurisdicionais, não sendo imparcial justamente porque é parte interessada.

Além disso, a medida nos parece desproporcional aos fins visados. Se a ideia é criar mecanismos que tornem mais efetivo o recebimento do crédito tributário, não é com o cancelamento do CPF e do CNPJ de pessoas físicas e jurídicas que esse objetivo será alcançado. Bem ao contrário: a criação de restrições ao exercício da atividade social e econômica impede a produção de riquezas e, consequentemente, o pagamento de tributos.

É bem verdade que o pretenso exercício de atividades econômicas não pode se prestar a encobrir a prática de atos ilícitos, que devem ser estancados. Para isso, no entanto, a Fazenda Pública já conta com mecanismos muito eficazes no ordenamento jurídico atual, como a medida cautelar fiscal, que o próprio PL, em outros dispositivos, busca robustecer.[4]

Melhor seria se o procedimento para caracterizar restrições administrativas constituísse mecanismo preparatório de coleta de evidências a justificar o ajuizamento futuro de medida judicial em face do devedor, ainda que destinada ao cancelamento de CPF ou CNPJ, caso comprovado em juízo o desvio de finalidade no exercício de atividade econômica, utilizada como subterfúgio para a prática de ilícitos tributários.

O PL permite ainda que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) ofereça condições diferenciadas para quitação de débitos inscritos em dívida ativa e que sejam classificados pela autoridade fazendária como irrecuperáveis ou de difícil recuperação. Nessas hipóteses, desde que não haja indícios de esvaziamento patrimonial, poderão ser concedidos descontos de até 50% do valor consolidado da dívida. Os descontos podem ser aplicados sobre multa e juros, para pagamento à vista ou em até 60 parcelas. Não serão aplicáveis os descontos para (i) multas que, em lançamento de ofício, visem punir sonegação fiscal, fraude e conluio, na forma prevista na Lei nº 4.502/64;[5] (ii) créditos relativos ao Simples Nacional ou ao FGTS; (iii) créditos inscritos em dívida ativa há menos de dez anos.

Compete à PGFN regulamentar a fixação de descontos, inclusive com base na recuperabilidade do crédito e no prazo para sua quitação.

A proposta, aqui, parece razoável e destinada efetivamente ao recebimento do crédito tributário. Contempla a possibilidade de celebração de negócio jurídico extrajudicial entre Fazenda Pública e contribuinte, no bojo dos modernos e eficazes meios alternativos de resolução de controvérsias.

A principal crítica diz respeito ao tempo mínimo pelo qual o débito deve estar inscrito em dívida ativa (dez anos) para que seja passível de submissão ao negócio jurídico extraprocessual. Se o objetivo é compor a lide tributária, e se a autoridade fazendária já tem liberdade para classificar o crédito como irrecuperável ou de difícil recuperação, bem como para fixar percentuais de desconto com base no grau de sua recuperabilidade e no tempo para recebimento dos valores, esse prazo pode inviabilizar a efetiva satisfação do crédito, ainda que parcialmente.

Espera-se que, durante o debate democrático que deve permear o processo legislativo, esses e outros aspectos sejam objeto de maior reflexão, para que a cobrança e o recebimento da dívida tributária atendam aos anseios da sociedade, sem violar direitos fundamentais do contribuinte.


[1] O débito que não esteja com a exigibilidade suspensa.

[2] Participação no fato gerador, sucessão, vínculo com o fato gerador, responsabilidade de gestores por atos praticados com infração à lei ou aos estatutos ou com excesso de poderes, entre outras hipóteses expressamente previstas.

[3] O art. 2º do PL permite a instauração do procedimento administrativo para caracterização e aplicação de restrições administrativas nas hipóteses em que haja indícios de que: (i) a pessoa jurídica tenha sido instituída para a prática de fraude fiscal estruturada, inclusive em proveito de terceiros; (ii) a pessoa jurídica esteja constituída por interpostas pessoas que não sejam os verdadeiros sócios ou acionistas ou o verdadeiro titular, na hipótese de firma individual; (iii) a pessoa jurídica participe de organização constituída com o propósito de não recolher tributos ou de burlar os mecanismos de cobrança de débitos fiscais; e (iv) a pessoa física, devedora principal ou corresponsável, deliberadamente oculta bens, receitas ou direitos, com o propósito de não recolher tributos ou de burlar os mecanismos de cobrança de débitos fiscais.

[4] Não é objeto deste artigo a parte do PL dedicada a alterações na Lei nº 8.397/92, que disciplina a medida cautelar fiscal. De toda forma, é importante esclarecer que esse instrumento, tal qual atualmente regulado, já confere suficiente (quiçá exacerbada) proteção ao crédito tributário. Algumas das novas normas propostas são claramente inconstitucionais, ao novamente confundirem a pessoa do pretenso devedor com terceiros, criando regras de responsabilidade pelo mero não pagamento do tributo.

[5] Artigos 71, 72 e 73.