Desde que a Emenda Constitucional nº 45/2004 (EC 45/2004) criou o instituto da repercussão geral como mais um requisito formal para possibilitar o conhecimento do recurso extraordinário a ser julgado, o Supremo Tribunal Federal (STF) somente aprecia determinada discussão constitucional quando ela tem o condão de atingir um grande número de interessados, não se limitando às partes envolvidas naquele litígio.

A introdução desse novo requisito contribuiu para realçar o papel de corte constitucional do STF, não apenas de mais uma e última instância que pode vir a ser demandada a resolver certa lide.

Isso não significa que, antes da EC 45/2004, o STF ostentasse a função de apenas mais um degrau na estrutura do Poder Judiciário nacional a ser percorrido antes do exaurimento completo de todas as possibilidades recursais estabelecidas na legislação brasileira. As características de corte constitucional do STF se tornaram mais evidentes principalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e com a criação do STJ, por meio da prescrição de rigorosos requisitos para conhecimento do recurso extraordinário e apreciação da matéria veiculada.

Entretanto, a inexistência de um requisito como a repercussão geral, que reflete a adoção de uma nova concepção do ordenamento jurídico pátrio (a abstrativização do julgamento de recurso extraordinário), permitia que chegasse para discussão no STF uma infinidade de recursos sobre o mesmo tema e, na maioria das vezes, de interesse de um número reduzido de indivíduos (transcendência subjetiva).

Com a introdução do novo requisito, a intenção foi mudar a forma como a Corte deve ser compreendida, de “mais uma instância” na estrutura do Poder Judiciário para o órgão competente para dirimir controvérsias constitucionais importantes e de interesse da sociedade brasileira, não apenas de pequena quantidade de interessados.

A forma de aferir se a matéria veiculada em determinado recurso extraordinário tem ou não repercussão geral e os efeitos decorrentes dessa apreciação evidenciam uma mudança na atuação da Corte. O próprio § 3º do artigo 102 da Constituição Federal prevê que a admissão do recurso extraordinário está condicionada à prévia aferição da existência da repercussão geral da matéria, e a recusa exige manifestação de dois terços dos membros da Corte. O procedimento a ser observado na análise da existência da repercussão geral é disciplinado pelo regimento interno do STF. Em linhas gerais, depois de distribuído o recurso extraordinário, o ministro relator analisará e apresentará sua manifestação, que será submetida à apreciação dos outros membros (atualmente em ambiente virtual) para decisão.

Reconhecida a existência de repercussão geral pelo STF, identifica-se a matéria específica que será apreciada pela Corte. Por consequência, os demais tribunais deverão sobrestar o andamento de novos recursos extraordinários interpostos sobre o tema. Muito embora o § 5º do artigo 1.035 do CPC/2015 preveja que todos os processos que veiculem a questão considerada de repercussão geral em trâmite no território nacional devam ter o processamento suspenso, entendemos que o mais consentâneo com os princípios da celeridade processual e efetividade da tutela jurisdicional seja a paralisação da marcha após, e se houver, a interposição de recurso extraordinário no tribunal de origem.

Com a adoção dessa medida, fica assegurado que, após a conclusão do julgamento no STF, o posicionamento vencedor poderá ser aplicado aos demais processos que versem sobre o tema com celeridade e sem a possibilidade de interposição de novos recursos que teriam o condão de apenas protelar indevidamente o trânsito em julgado.

Infere-se, pois, que, com o reconhecimento da repercussão geral de uma matéria, há um descolamento da apreciação do tema do julgamento do processo específico que possibilitou a chegada da matéria à Corte. Em outras palavras, reconhecida a repercussão geral, o STF afeta a matéria para apreciação pelo Plenário e com grande extensão, como ocorre no julgamento de ação em controle concentrado e abstrato de constitucionalidade.

Como resultado disso, o STF decidirá primeiramente a respeito do assunto constitucional que teve a repercussão geral reconhecida, não se limitando aos fundamentos expostos na peça recursal aviada. A Corte pode receber também contribuições de entidades representativas (amici curiae) com notório conhecimento sobre o tema. Após a conclusão do julgamento, será aplicado o entendimento alcançado para resolver o processo individual. Isso é corroborado pelo disposto no artigo 988, parágrafo único, do CPC, o qual prevê que, ainda que a parte desista do seu recurso, a matéria com repercussão geral reconhecida será apreciada pelo STF.

Esse novo modelo de julgamento de recursos recebe a denominação de abstrativização do julgamento de recurso extraordinário avulso. Ele versa sobre temas de grande interesse, com a separação da apreciação da tese em si e consequente aplicação do entendimento ao caso específico que possibilitou a sua chegada ao STF, guardando assim grande semelhança com a apreciação inerente ao controle abstrato e concentrado de constitucionalidade.

Os efeitos subjacentes às decisões proferidas segundo essa sistemática são vinculantes para os órgãos do Poder Judiciário, seja porque, i) uma vez aplicado pelo tribunal de 2º grau, não admitirão a interposição de novo recurso extraordinário, ou porque ii) há previsão de cabimento de reclamação contra a decisão do tribunal de 2º grau que desrespeitar o pronunciamento do STF, desde que exaurida a instância ordinária.

Nessa ordem, é possível constatar uma importante modificação no controle de constitucionalidade exercido pelo STF nos últimos anos, uma vez que decisões proferidas no julgamento de processos subjetivos, mas segundo o regime de repercussão geral, passam a ter efeito semelhante ao oriundo do controle abstrato e concentrado.

Essa nova forma de encarar a atuação da corte constitucional decorre da atribuição do chamado efeito transcendente às decisões do STF em controle de constitucionalidade difuso, especialmente quando marcado pela abstrativização. No voto proferido no julgamento da Reclamação 4.335, o ministro Gilmar Mendes fornece relevantes subsídios para a compreensão do tema nessa nova fase do controle de constitucionalidade no Brasil:

  • O Supremo Tribunal Federal percebeu que não poderia deixar de atribuir significado jurídico à declaração de inconstitucionalidade proferida em sede de controle incidental, ficando o órgão fracionário de outras Cortes exonerado do dever de submeter a declaração de inconstitucionalidade ao plenário ou ao órgão especial, na forma do art. 97 da Constituição. Não há dúvida de que o Tribunal, nessa hipótese, acabou por reconhecer efeito jurídico transcendente à sua decisão. Embora na fundamentação desse entendimento fale-se em quebra da presunção de constitucionalidade, é certo que, em verdade, a orientação do Supremo acabou por conferir à sua decisão algo assemelhado a um efeito vinculante, independentemente da intervenção do Senado. Esse entendimento está hoje consagrado na própria legislação processual civil (CPC, art. 481, parágrafo único, parte final, na redação da Lei n. 9756, de 17.12.1998).
  • Essa é a orientação que parece presidir o entendimento que julga dispensável a aplicação do art. 97 da Constituição por parte dos Tribunais ordinários, se o Supremo já tiver declarado a inconstitucionalidade da lei, ainda que no modelo incidental.

(…)

  • De qualquer sorte, a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental.
  • Somente essa nova compreensão parece apta a explicar o fato de o Tribunal ter passado a reconhecer efeitos gerais à decisão proferida em sede de controle incidental, independentemente da intervenção do Senado. O mesmo há de se dizer das várias decisões legislativas que reconhecem efeito transcendente às decisões do STF tomadas em sede de controle difuso.

Portanto, concluímos que o requisito da repercussão geral como elemento adicional a ser verificado para que o recurso extraordinário possa ser conhecido pelo STF, além de tornar a apreciação da matéria constitucional pela Corte mais desafiadora, por exigir que a decisão a ser proferida atinja um número grande de interessados, contribui para a abstrativização do controle de constitucionalidade difuso e concreto.

Em um momento que requer a adoção de mecanismos para dar mais efetividade às decisões do STF e proporcionar segurança jurídica e tratamento isonômico a litigantes que tenham discussões idênticas, institutos como a repercussão geral e a marca da abstrativização dos julgamentos segundo essa métrica merecem elogio.